O deserto veio à cidade
Referência : Costa, M. J., Capelo, S., Bortoli, D., Salgueiro, P., (2023) O deserto veio à cidade, Rev. Ciência Elem., V11(4):042
Autora: Maria João Costa, Sofia Capelo, Daniele Bortoli e Pedro Salgueiro
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2023.042]
[editar] Resumo
As poeiras provenientes do deserto (Norte de África) assolam com alguma frequência o território português e constituem um dos eventos naturais com maior predominância. A observação deste evento traduz-se pela poeira que se deposita nas superfícies (carros, casas, ruas) e, também, pelos efeitos que provoca na radiação solar. O registo fotográfico permite constatar o efeito ótico gerado, que é comprovado pela medição da matéria particulada durante estes eventos. Estas poeiras, transportadas de longas distâncias, contribuem para a degradação da qualidade do ar e têm implicações climáticas. No entanto, a sua deposição gera também um aumento de nutrientes essenciais.
Os aerossóis, também designados por matéria particulada, ou simplesmente partículas, são definidos como a matéria sólida ou líquida em suspensão no ar, com um diâmetro aerodinâmico entre 0,005 e 100 μm[1], [2]. Por serem partículas pequenas e leves, em suspensão na atmosfera, são facilmente transportadas a grandes distâncias. As poeiras de várias origens, incluindo as provenientes de desertos, são introduzidas na atmosfera por ação de turbulência junto à superfície, e constituem um tipo de aerossóis atmosféricos.
As poeiras emitidas pelo deserto do Saara são frequentemente transportadas para zonas distantes, seja para a Europa através de circulações de Sul, Sudoeste ou Sudeste, seja para o continente americano pelos ventos alísios atravessando o Oceano Atlântico tropical, atingindo a Amazónia e o Mar das Caraíbas. As poeiras transportadas na atmosfera degradam a qualidade do ar e interagem com a radiação e as nuvens, com implicações para o clima. Estes aerossóis dispersam e absorvem a radiação solar, aumentando o albedo planetário (reflexão de radiação solar pelo planeta) e provocando arrefecimento à superfície. Por outro lado, estas partículas podem servir como núcleos de condensação ou núcleos de gelo, induzindo alterações na formação e tempo de residência das nuvens na atmosfera[3], [4]. Por outro lado, as partículas que se depositam na terra e no oceano adicionam nutrientes essenciais que podem aumentar a produtividade dos ecossistemas terrestres e aquáticos e modular os ciclos biogeoquímicos e o clima. Estima-se que, anualmente, cerca de 28 milhões de toneladas de poeira deixam a costa do norte da África e são transportadas através do Oceano Atlântico, sendo depositadas no Oceano Atlântico tropical, Mar das Caraíbas e na Amazónia[5]. A deposição de poeira adiciona ferro e fósforo ao Oceano Atlântico tropical e Mar das Caraíbas, onde a produtividade do ecossistema marinho depende da disponibilidade desses nutrientes. O transporte transatlântico de poeiras fornece também anualmente cerca de 22 000 kg de fósforo para a Amazónia, que compensa a perda deste nutriente essencial para as plantas, por chuvas e inundações. Este processo sugere um papel importante da poeira do Saara na manutenção da produtividade da Amazónia em escalas de tempo de décadas ou até de séculos/html>YU, H. et al., The fertilizing role of African dust in the Amazon rainforest: a first multiyear assessment based on data from Cloud-Aerosol Lidar and Infrared Pathfinder Satellite Observations, Geophys Res Lett, 42, 1984-1991. 2015.</ref>.
O efeito das poeiras do deserto é visível a olho nu, como a cor e opacidade conferidas ao céu, a deposição em superfícies, a “chuva de lama” e as auroras, e ocasos particularmente coloridos. Estes efeitos devem-se à interação destas partículas com a radiação solar (FIGURA 1). A explicação deste fenómeno resume-se, de forma simplificada, pela dispersão desigual da radiação solar causada por estas partículas. A radiação solar é constituída por cores (violeta, índigo, azul, verde, amarelo, laranja, vermelho) com comprimentos de onda entre 390 nm e 770 nm, respetivamente[6]. No final da tarde, a luz azul da radiação solar é preferencialmente dispersa nas camadas mais altas da atmosfera, deixando os tons laranja e vermelhos visíveis nas camadas mais baixas da atmosfera, ou seja, na zona mais baixa do horizonte (FIGURA 1). A perda de pequenos comprimentos de onda por dispersão, como é o caso da luz azul, conduz ao efeito apresentado pela fotografia na FIGURA 1, obtida ao fim da tarde. Nas auroras, o efeito é semelhante, prevalecendo os tons alaranjados nas camadas mais baixas da atmosfera[7].

As poeiras do deserto contribuem também para a degradação da qualidade do ar, provocando por vezes excedências dos valores admissíveis pela legislação nacional e europeia. Tendo em conta a proteção da saúde humana, a Diretiva Europeia para a qualidade do ar define um valor limite médio diário de partículas em suspensão do tipo PM10 (Particulate Matter (PM) < 10 μm) de 50 microgramas por metro cúbico (μg/m3), e esse valor não pode ser excedido mais do que 35 vezes por ano civil. Quando esse valor é ultrapassado pode acarretar alguns riscos para a saúde pública, devendo nesses casos a população proteger-se seguindo as indicações das autoridades.
Anualmente diversos eventos naturais ocorrem no território português e são analisados pela Agência Portuguesa do Ambiente[8], no entanto o ocorrido entre 15 e 17 de março de 2022, foi particularmente intenso, com a deteção de concentrações de partículas cerca de oito vezes superior ao valor limite recomendado para a proteção da saúde humana, sendo também excedido em dois dias durante este período. A Península Ibérica, assim como a Europa Central foram afetadas pelo transporte de poeiras do deserto originárias do Norte de África. E apesar de ser um fenómeno relativamente frequente nesta altura do ano, esta intrusão foi a mais intensa desde que há registos na rede europeia EARLINET— ACTRIS. O transporte de partículas do deserto do Saara foi monitorizado no Laboratório de Deteção Remota (EaRSLab) e no Instituto de Ciências da Terra (ICT), da Universidade de Évora (FIGURA 2). Ainda durante o mês de março, alguns dias depois, novos transportes de aerossóis do deserto com menor intensidade afetaram de novo a Península Ibérica.
A pluma de poeiras do deserto mais intensa foi transportada a baixa altitude (FIGURA 2), tendo sido detetada à superfície, em Évora, na manhã do dia 15 de março, persistindo sobre a cidade até ao final da manhã de 17 de março. O índice de qualidade do ar classificou-se durante este período como mau, o nível de poluição mais gravoso. A evolução da pluma de poeiras foi monitorizada pela animação de composições de imagem RGB do Spinning Enhanced Visible and Infrared Imager (SEVIRI) a bordo do satélite Meteosat, adaptado para monitorizar a evolução das tempestades de poeira sobre os desertos durante o dia e a noite[9]. Na FIGURA 2 apresenta-se apenas uma imagem RGB que representa a chegada das poeiras ao território nacional e à Europa. As diferentes cores permitem discriminar não apenas o transporte de poeira do deserto, mas também nuvens de baixo, médio e alto nível. O sistema de cores RGB, que é a abreviatura de três cores, vermelho (Red), verde (Green), e azul (Blue), combina estas cores para reproduzir um largo espectro cromático.

Por outro lado, foi possível acompanhar a evolução da concentração da matéria particulada, com diferentes diâmetros aerodinâmicos (PM1, PM2.5 e PM10), entre 15 e 17 de março, na cidade de Évora (FIGURA 3). O comportamento das curvas é similar para todos os diâmetros de matéria particulada, registando-se um máximo de concentração no final na tarde do dia 15 de março (3.ª feira), pelas 19:37 horas. O máximo atingido foi de 854 μg/m3 de PM10, com um valor médio de 424 μg/m3 em 24 horas. Os maiores diâmetros de matéria particulada predominam, com a maior contribuição de PM10 seguida de PM2.5, e bastante menor de PM1. Esta distribuição é a esperada, uma vez que as poeiras do deserto apresentam em geral partículas de dimensões maiores comparativamente por exemplo com aerossóis provenientes de emissões antropogénicas ou de incêndios[10].
Os aerossóis do deserto foram arrastados por ação de ventos de sul, em consequência da depressão Célia que afetou a Ilha da Madeira. Inicialmente, detetou-se o transporte em altitude das poeiras, a cerca de quatro quilómetros, mas as partículas acabaram por ir descendo gradualmente para junto da superfície terrestre. Assim, apesar da existência de nuvens altas, formou-se uma camada tão espessa de poeira que provocou a extinção da radiação solar, originando a observação do ar amarelado (FIGURA 3). Por outro lado, no final do dia, a interação das partículas com a radiação solar originou no horizonte cores em tons de laranja avermelhado (em baixo) e de azul (no alto), tal como referido anteriormente (FIGURA 3). A presença destas partículas persistiu até 17 de março, devido à deslocação do centro de baixas pressões para o norte de África, que permitiu o arrastamento destas poeiras. Este evento é frequente no final do inverno e início da primavera. No passado, exatamente há 10 anos, em março de 2012, houve uma ocorrência muito parecida, e em março de 2021, registou-se uma ocorrência similar, mas menos significativa.

O registo fotográfico que acompanha a medição da matéria particulada resultou de um concurso, promovido pelo EaRSLab e o ICT, que envolveu a comunidade eborense, culminando na realização de uma exposição fotográfica intitulada O deserto veio à cidade na Biblioteca do Colégio Luís António Verney (Universidade de Évora). Este concurso de fotografia pretendeu aliar a arte da fotografia, à explicação científica do fenómeno e à divulgação de resultados, alertando também para os riscos para a saúde humana e formas de proteção. As fotografias foram expostas numa galeria online, na página da exposição fotográfica, onde podem ser consultadas, e que também inclui informação explicativa de alguns fenómenos relacionados com estas partículas[11]. O EaRSLab e o ICT têm monitorizado este tipo de eventos, permitindo o apoio à investigação, no âmbito da observação atmosférica, qualidade do ar, clima e alterações climáticas, e também o apoio à formação em vários ciclos de estudos, em especial às licenciaturas em Física e Química e em Ecologia e Ambiente, Mestrado em Ciências da Terra e da Atmosfera e Doutoramento em Ciências da Terra e do Espaço, da Universidade de Évora.
[editar] Referências
- ↑ ALVES, C., Aerossóis atmosféricos: perspectiva histórica, fontes, processos químicos de formação e composição orgânica, Quim Nova, 28, 5, 859-870. 2005.
- ↑ Guia Qualidade do Ar em Espaços Interiores - Um Guia Técnico, Agência Portuguesa do Ambiente. 2010.
- ↑ GULEV, S. K. et al., Changing State of the Climate System, Cambridge University Press, p 287–422, Secção 2.2.6. 2021.
- ↑ COSTA, M. et al., Cloud microphysical properties retrieval during intense biomass burning events over Africa and Portugal, Springer International Publishing, p 97-111. 2007.
- ↑ YU, H. et al., The fertilizing role of African dust in the Amazon rainforest: a first multiyear assessment based on data from Cloud-Aerosol Lidar and Infrared Pathfinder Satellite Observations, Geophys Res Lett, 42, 1984-1991. 2015.
- ↑ MIRANDA, P. M. A., Meteorologia e Ambiente, Universidade Aberta, Lisboa. 2000.
- ↑ PEIXOTO, J. P., A radiação solar e o ambiente, Secretaria de Estado do Ordenamento e Ambiente, Comissão Nacional do Ambiente, Editorial Minerva, Lisboa. 1981.
- ↑ Relatórios de Eventos Naturais, Agência Portuguesa do Ambiente. 2022.
- ↑ Animação de imagens RGB.
- ↑ SALGUEIRO, V. et al., Characterization of forest fire and Saharan desert dust aerosols over South-western Europe using a multi-wavelength Raman lidar and Sun-photometer, Atmospheric Environment, 252, 118346. 2021.
- ↑ Exposição “O deserto veio à cidade”.
Criada em 2 de Março de 2023
Revista em 15 de Maio de 2023
Aceite pelo editor em 15 de Dezembro de 2023