Ondas gravitacionais e (astro)física fundamental

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Referência : Herdeiro, C. A. R., (2020) Ondas gravitacionais e (astro)física fundamental, Rev. Ciência Elem., V8(4):058
Autor: Carlos A. R. Herdeiro
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2020.058]
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Resumo

A primeira deteção de ondas gravitacionais, em setembro de 2015, marcou o início de uma nova era na astrofísica. Uma importante parte do Universo dinâmico, até aí invisível, tornou-se acessível. Seguiram-se, desde então, várias outras observações que nos têm dado informações preciosas sobre a física de buracos negros, de estrelas de neutrões e sobre a própria gravidade, por exemplo, a velocidade a que se propaga. Mas a história das ondas gravitacionais começa um século antes da primeira deteção com a apresentação, por Albert Einstein, das equações da Relatividade Geral. É uma história recheada de episódios e controvérsia. Cinco anos depois, refletimos sobre o passado, o presente e o futuro das ondas gravitacionais, o que já ensinaram e o que poderão vir a ensinar.


No dia 14 de Setembro de 2015, os dois detetores de ondas gravitacionais (OGs) do Laser Intereferometer Gravitational Wave Observatory (LIGO) ainda não estavam completamente operacionais. Estavam em testes e o início oficial da colheita de dados havia sido adiado para 18 de Setembro. Um investigador pós-doutoral de 33 anos, chamado Marco Drago, que se encontrava na Alemanha (Max Planck Institute de Hanover) recebeu um alerta de um possível sinal (uma leitura fora do normal). Os analistas de dados recebiam cerca de um destes alertas por dia nesta fase das operações; contudo, a razão de sinal para ruído deste alerta particular era bastante superior ao normal, e o sinal tinha sido recebido quase em simultâneo nos dois detetores (com 7 mili-segundos de separação) o que excluia, estatisticamente, a possibilidade de ruído aleatório.

Depois de meses de análise, ficou estabelecido que o sinal era ajustado pelo modelo teórico de uma colisão de dois buracos negros, um com 29 massas solares e outro com 36 massas solares, que terá ocorrido há cerca de 1.3 mil milhões de anos, numa altura em que a escala evolutiva na Terra era dominada por bactérias. Devido ao desfasamento dos sinais foi possível determinar a região aproximada do céu de onde o sinal origina, que fica no hemisfério sul celeste, na zona das nuvens de Magalhães. Pela primeira vez tinham sido detetadas OGs e compreendido o que as originou.

Pois bem, com a deteção de OGs começámos a “ouvir” uma parte que faltava da mais grandiosa de todas as peças. Estamos agora a conhecer personagens invisíveis que até agora desconhecíamos. E aguardamos supresas.


Passado: um século à espera

Génese

A história moderna das ondas OGs tem início a 25 de Novembro de 1915, quando, na Academia Prussiana em Berlim, A. Einstein fez a quarta e última apresentação sobre a sua nova teoria da gravitação[1], a Relatividade Geral (RG). Nesse dia, Einstein apresentou a forma final das equações de campo que regem esta teoria: as equações de Einstein da RG.

Na RG, a gravidade tem uma velocidade de propagação finita. Alterando, por exemplo, a posição das fontes de gravitação, o respetivo “campo” reajusta-se progressivamente. Este comportamento contrasta com o da gravitação Newtoniana, onde a velocidade de propagação é infinita e portanto incompatível com a causalidade da relatividade restrita, formulada por Einstein em 1905[2]. Por outro lado, o mesmo comportamento é observado no eletromagnetismo, cujas leis estabelecidas por J. C. Maxwell na década de 1860[3] preveêm que a interação eletromagnética se propaga, no vazio, a uma velocidade finita: a “velocidade da luz”, denotada por “c” e aproximadamente de 300 000 km/s.

Para compreender como se propaga a gravidade, e a que velocidade, Einstein estudou em 1916 as suas equações em regiões vazias (sem matéria), sem fontes de gravidade, considerando pequenas flutuações da interação gravitacional[4]. Esta técnica permitiu-lhe obter equações de onda semelhante às que se podem obter no eletromagnetismo, onde descrevem a propagação de ondas eletromagnéticas. Deste modo, Einstein reconheceu a existência de “OGs”. Adicionalmente, Einstein identificou três classes destas ondas, notando, contudo, que apenas um tipo transporta energia e esse tipo propaga-se, precisamente, à velocidade da luz.

Dois anos mais tarde<[5] Einstein reconheceu que as duas classes de OGs que não transportam energias são artefactos: são apenas flutuações sinusoidais do sistema de coordenadas usado e não flutuações reais da interação gravitacional. Num artigo de 1922[6], A. Eddington escreveu que “a única velocidade relevante [para estes “modos”] é a velocidade do pensamento”. Este curioso chavão, que OGs viajam “à velocidade do pensamento”, tornou- se nas décadas seguintes um slogan do cepticismo sobre a real existência de qualquer tipo de OGs.


Controvérsia

Uma onda física viajante, seja de água, na corda de uma guitarra ou eletromagnética, transporta energia. Contudo, a questão “uma OG transporta energia?” é delicada.

No eletromagnetismo, o valor dos campos elétrico e magnético num certo ponto definem a energia do campo nesse ponto, medida por um certo observador. Em particular, determina- se a energia transportada por uma onda eletromagnética sem ambiguidades. Na RG, por outro lado, o “campo” gravitacional em qualquer ponto é nulo para uma certa classe de observadores: aqueles que estão em queda livre. Este simples facto cria um obstáculo na definição local (isto é, num ponto) da energia da interação gravitacional, em RG. Em particular, cria também ambiguidades na determinação da energia transportada pelas OGs que Einstein estudou em 1916/18.

Se não é claro se as OGs transportem energia, será que têm realidade física? Ou serão artefactos matemáticos? Este debate arrastou-se durante várias décadas. Einstein voltou ao assunto em 1936. Numa carta a M. Born escreveu “Juntamente com um jovem colaborador, cheguei à interessante conclusão que OGs não existem, embora tivessem sido assumidas como uma certeza na primeira aproximação.” Esta correspondência é o início de um curioso episódio que colocou Einstein em litígio com a revista científica Physical Review[7]. No final, Einstein retratou-se, admitindo que a situação era inconclusiva. E foi este o seu canto de cisne sobre o dossier OGs.

Em 1957, dois anos depois da morte de Einstein, ocorreu uma conferência sobre gravitação em Chapel Hill, nos EUA. Participou a elite científica da área, bem como outros cientistas de renome, entre os quais Richard Feynman. A controvérsia sobre a realidade física das OGs perdurava, centrando-se em tentativas (sem consenso) de definir matematicamente a energia local da interação gravitacional. Feynman sugeriu uma nova perspectiva, que seria decisiva na persuasão da comunidade: em vez de discutir se transportam energia, será que podemos estabelecer se as OGs realizam trabalho, quando interagem com a matéria?

Baseado no (à altura) recente entendimento de como as OGs afetam a matéria, desenvolvido principalmente for F. Pirani, Feynman propôs uma experiência concetual simples: “as argolas pegajosas”. Imagine-se uma vara com uma superfície com atrito e com duas argolas enfiadas, que ficam a uma certa distância. O efeito de uma OG, por exemplo sinusoidal, que passe pelo sistema é provocar uma aceleração relativa das partículas do sistema (ex., ao longo da vara), contraindo ou expandindo o sistema, conforme a fase da onda. As argolas responderão a este efeito de maré com maior amplitude do que as partes da vara, dado que são livres de deslizar sobre a vara. Mas ao deslizar, o atrito implica a deposição de energia, que terá de provir da OG. Logo as OGs têm de transportar energia, pois podem realizar trabalho.


Evidência

Tendo compreendido como se propagam e interagem com a matéria, falta responder a outra questão central: o que gera OGs? Einstein respondeu corretamente a esta pergunta no seu artigo de 1918[8]. OGs são geradas, genericamente, quando há fontes de gravitação aceleradas. Em termos astrofísicos, a fonte mais comum é um binário de astros em órbita em torno do centro de gravidade comum. Contudo, a potência emitida é, em primeira ordem, proporcional a G/c[9], onde G é a constante de gravitação universal. A pequenez deste número (em Unidades SI) requer que fontes astrofísicas detetaveis tenham de possuir massas, morfologias e propriedades dinâmicas notáveis.

Porém, mesmo sem detetar OGs pode-se detetar o seu efeito na fonte. Como as OGs emitidas transportam energia, a fonte perde energia. Consequentemente, no caso de um sistema binário, a distância entre os astros diminui, tal como o período orbital. Para, por exemplo, o binário Terra-Sol, este efeito é demasiado pequeno para ser observável. Mas em 1975 foi descoberto o primeiro binário de estrelas de neutrões, que são muito compactas, onde uma das estrelas é vista como um pulsar[10]. Observando o sistema ao longo de alguns anos[11] detetou-se uma variação do período orbital (isto é do tempo que cada uma das estrelas demora a completar uma volta em torno do centro de massa comum) em concordância com a previsão da RG, devida à emissão de OGs, conclusão confirmada por décadas de observações deste[12] e outros sistemas binários compactos[13]. Estas observações dissiparam qualquer dúvida sobre a realidade das OGs e deram o prémio Nobel da Física de 1993 a R. Hulse e J. Taylor[14]. Faltava, “apenas”, a deteção direta de OGs.


Preparação

Entre 1967 e 1972, R. Weiss (do MIT nos EUA) começou a estudar a possibilidade de detetar OGs com interferómetros de Michelson-Morley. A motivação para estes detetores resulta do efeito de maré que as OGs imprimem na matéria, produzindo acelerações relativas com sinal contrário em direções ortogonais: quando a OG estica a matéria numa direção, contrai-a na direção ortogonal. Este efeito é denominado quadrupolar. O interferómetro de Michelson, precisamente, tem dois braços perpendiculares e a alteração dos seus comprimentos pela OG resulta numa alteração detetável da interferência entre os sinais de luz de cada braço.

A partir de 1968, K. Thorne (do CalTech) iniciou esforços teóricos sobre fontes de OGs e as características do sinal, com vista à sua deteção. Em 1980 a National Science Foundation (NSF) dos EUA, financiou o estudo de um longo interferómetro liderado pelo MIT e no ano seguinte o CalTech construiu um protótipo de 40 metros. O MIT e o CalTech acabariam por juntar os seus esforços formando o LIGO[15]. Em 1994 o LIGO tornou-se o maior projeto financiado na história da NSF. Foram escolhidas duas localizações para dois intereferómetros gémeos, nos EUA, separados por 3002 Km. A construção iniciou-se em Hanford (Washington) em 1994 e em Livingston (Louisiana) em 1995. Os dois inteferómetros, ambos em forma de L, têm braços de aproximadamente 4 Kms.

O LIGO inicial operou entre 2002 e 2010 não tendo detetado OGs (como esperado). O LIGO avançado, uma versão mais sensível dos instrumentos, iniciou a sua primeira sessão de observação (designada por O1) em Setembro de 2015, com uma espectativa real de, 100 anos depois da RG, detetar uma das suas mais notáveis previsões.


Presente: a era da astrofísica das OGs

GW150914 - Deteção

A 14 de Setembro de 2015 foi feita a primeira deteção, designada (como todas as seguintes) pela data: GW150914[16]. Cada deteção fornece uma forma de onda, que sumaria a forma como o detetor vibrou durante a passagem da OG. Uma vibração consistente tem que ocorrer em ambos os interferómetros, para o LIGO assumir que uma deteção foi feita, o que explica a necessidade de duplicação dos detetores.

A interpretação da forma de onda, por outro lado, exige modelação teórica, para a relacionar com a possível fonte. Por isso, a comunidade de gravitação relativista preparou, durante a década anterior à deteção, bibliotecas de formas de onda para os eventos mais prováveis, como binários de buracos negros (BNs) ou de estrelas de neutrões, varrendo os tais diferentes parâmetros do sistema[17]. Por exemplo, um binário de BNs (sem rotação individual, que designaremos por spin[18]) em órbitas quasi-circulares produz uma forma de onda com uma frequência e amplitude que aumentam monotonicamente à medida que os dois BNs se aproximam, até à fusão num único BN, altura em que a amplitude é máxima. Segue-se a fase de relaxamento, em que o BN final, perturbado, relaxa para um estado estacionário e a forma de onda é descrita por uma sinusoide com um envelope de decaimento exponencial (FIGURA 1). Mas se os BNs tiverem spin, o eixo de rotação tipicamente precessa durante o movimento orbital, introduzindo frequências adicionais na forma de onda e uma modulação da amplitude. A estratégia do LIGO é usar ferramentas de análise estatística Bayesiana para declarar qual o melhor ajuste ao sinal real, ao varrer a biblioteca de formas de onda. Esta técnica é designada por matched filtering. Desta maneira determina-se a fonte: os objetos, as massas e spins. Com esta informação, a amplitude do sinal permite determinar a distância à fonte.


FIGURA 1. Forma de onda, obtida por uma simulação computacional, de para uma colisões de BNs de igual massa e sem spin. As três fases, aproximação, fusão e relaxamento são especificadas (em parêntises a terminologia anglo-saxónica). O eixo horizontal representa o tempo e o vertical a deformação gravitacional (que corresponde à vibração do detetor), em unidades apropriadas. O painel da direita tem escalas diferentes, para representar em detalhe a fusão e o relaxamento; observe-se, em particular, o considerável aumento da amplitude[19].

A deteção do evento GW150914 foi notável. Em primeiro lugar confirmou, por deteção direta, que as OGs existem, fazendo notícia em todo o mundo e abrindo a era da astrofísica das OGs. Com o método anteriormente descrito, o evento foi interpretado como as (cerca de) quatro órbitas finais e a colisão de dois BNs com, aproximadamente, 35.6 e 30.6 massas solares, que se fundiram num BN final com cerca de 63.1 massas solares. Isto significa que no processo de fusão cerca de 3 massas solares foram emitidas em ondas gravitacionais. O sinal detetado teve a duração de cerca de 0.2s[20]. Todo o sinal é consistente com a RG e a hipótese que os BNs são descritos pela solução canónica da RG, descoberta por R. Kerr em 1963 e denominada por métrica de Kerr[21]. Do ponto de vista astrofísico, um interessante resultado foi o acesso a uma população de BNs mais massivos. Anteriormente, BNs nesta “classe” (com massas comparáveis às de estrelas) tinham sido inferidos por observações em sistemas binários (contendo uma estrela e um BN que acreta matéria da estrela) que emitem raios-X[22]. Mas apenas tinham sido observados BNs com até cerca de 30 massas solares, pelo que o BN com mais de 60 massas solares inferido de GW1150914, se tornou o mais massivo desta população, à época.


GW170817 - Multi-mensageiros

As duas primeiras sessões de observação do LIGO, O1+O2, ao qual se juntou, na segunda metade de 2017, um detetor Europeu semelhante, Virgo[23], localizado perto de Pisa, em Itália, terminaram em Agosto de 2017. A cooperação entre os três detetores permite triangular a fonte, localizando-a no céu com maior precisão, o que ficou claro no primeiro sinal detetado pela Colaboração Científica LIGO-Virgo (CCLV), GW170814[24], também interpretado como uma colisão entre dois BNs.

Apenas três dias depois deste evento, ocorreu uma das mais mediáticas deteções de OGs: GW170817[25], um evento interpretado como uma colisão de duas estrelas de neutrões. Este evento foi visto não apenas pela CCLV, mas por múltiplos telescópios e observatórios de radiação eletromagnética, varrendo praticamente todo o espectro, iniciando assim a era de astronomia multi-mensageira incluindo OGs.

Estrelas de neutrões são feitas de matéria, enquanto que os BN, na região de espaço- -tempo a que observadores externos têm acesso (fora da sua fronteira virtual, denominado “horizonte de acontecimentos”), são apenas espaço tempo deformado. Logo, uma colisão de estrelas de neutrões é fonte de OGs e de radiação eletromagnética. Cerca de 1.7s depois da OG detetada pela CCLV, dois detetores de raios gama (em órbita), Integral[26] e Fermi[27], detetaram uma “explosão de raios gama”, numa localização compatível com a triangulação feita pela CCLV. Um empenho, sem precedentes, da comunidade internacional de astrónomos permitiu identificar, cerca de 11 horas depois do GW170817, uma possível galáxia anfitriã (NGS 4993), onde surgiu um transiente visível na banda do óptico. Este transiente foi seguido nas semanas seguintes por muitos telescópios nas várias bandas eletromagnéticas, desde os raios X até ao rádio, colecionando valiosa informação sobre este tipo de transientes astronómicos, conhecidos como kilonovas, e que a deteção de GW170817 permitiu associar a uma colisão de estrelas de neutrões[28].

As inferências extraídas de GW170817 foram inúmeras; em particular foi possível estimar com notável precisão a velocidade da gravidade. A diferença do tempo de chegada entre as OGs e a explosão de raios gama, assumindo que toda ele é devida a uma diferente velocidade de propagação, permite concluir que a velocidade das OGs não difere da da luz por mais de algumas partes em 10[29], [30].


\(-3\times 10^{-15}\leq \frac{v_{OGs}-c}{c}\leq +7\times 10^{-16}\)


Este é um resultado notável, em perfeito acordo com a RG, que pode ser usado para restringir, ou até excluir, modelos de gravidade modificada em que as OGs não se propagam à velocidade da luz. Várias classes de modelos, em particular alguns dos concebidos para explicar o mistério da energia escura, foram deste modo excluídos, mostrando o impacto das OGs na Cosmologia[31].

Os dados da O1+O2 da CCLV revelariam um total de 11 eventos de OGs[32], todos eles, à exceção de GW170817, interpretados como colisões de BNs. O titânico esforço de um século de toda uma comunidade científica foi premiado com o prémio Nobel da Física de 2017, atribuído a R. Weiss, B. Barrish (pelo seu papel de liderança no LIGO) e K. Thorne[33].


GW190521 - Inesperado?

A O3 da CCLV iniciou-se em Abril de 2019 e terminou (permaturamente, em virtude da pandemia) em Março de 2020. Na O3, a CCLV iniciou a política de tornar públicos, de imediato, os eventos candidatos[34], mas não confirmados. A O3 produziou 56 eventos candidatos. Até ao momento, 4 destes são deteções confirmadas[35], [36], [37], [38]. O mais intrigante, GW190521, foi confirmado no início de Setembro de 2020[39].

O GW190521 foi interpretado como uma colisão de BNs, mas tem várias propriedades distintas. Primeiro, os BNs progenitores são os mais massivos até ao momento, com cerca de 85 e 66 massas solares. Isto significa que, mesmo com as incertezas, pelo menos um dos progenitores se encontra numa gama de massas onde, de acordo com a teoria vigente de evolução estelar, BNs não se podem formar diretamente do colapso gravitacional de uma estrela[40]. Estima-se que esta lacuna no espectro de massas de BNs ocorra entre cerca de 50 a 120 massas solares. A pergunta é, portanto, como é que os BNs progenitores se formaram?

Segundo, este foi um sinal de frequência baixa (em geral, quanto maiores os BNs, menor a frequência do sinal de OGs). Consequentemente, a aproximação orbital não foi vista pela CCLV, dado que está fora da banda a que os detetores são sensíveis; apenas foi vista a fusão e o relaxamento do BN final, o que deixa espaço para especular sobre se realmente foi uma colisão e sobre que tipo de objectos colidiram.

Terceiro, o BN final tem uma massa estimada de 142 massas solares, tornando-se o primeiro “BN de massa intermédia” descoberto. Esta é uma população entre os BNs de massa comparável a estrelas (tradicionalmente vistos em binários de raios X) e os BNs supermassivos, tradicionalmente inferidos por observações rádio[41], correspondendo a uma população que se especulava existir, mas sem evidência anterior.

A incerteza relativamente à formação dos BNs progenitores e a novidade do BN final, está a estimular discussões sobre este evento e a promover explicações alternativas. Por exemplo, foi proposto que GW190514 é compatível com a colisão de estrelas de matéria escura, em cujo caso seria possível detetar a massa de uma nova partícula fundamental (de matéria escura)[42].

Depois de as OGs terem confirmado muito do que se esperava, talvez GW190521 seja o primeiro exemplo do que a comunidade também desejava: o inesperado.


Futuro: as diferentes cores do Universo gravitacional

A curto prazo o futuro expectável da astronomia de OGs é o do aumento de estatística e precisão. O interferómetro japonês KAGRA[43], já está operacional, e irá juntar-se à CCLV na O4, prevista para começar em 2021. O interferómetro LIGO-Índia[44] deverá juntar-se à colaboração na O5, prevista para 2025. Mais detetores irão permitir uma maior razão de sinal vs. ruído, uma melhor localização dos eventos na esfera celestial, o que irá facilitar o interface com observações eletromagnéticas para eventos multi-mensageiros e também irá permitir medições da polarização das OGs.

Tal como as ondas eletromagnéticas, as OGs têm duas polarizações possíveis, que transportam informação complementar. A medição da polarização permitirá informações mais detalhadas sobre a fonte, em particular o spin dos progenitores, no caso de colisões de BNs e a deformabilidade, no caso das estrelas de neutrões. Esta última propriedade irá, por seu lado, ajudar a compreender melhor a equação de estado das estrelas de neutrões, ou seja, que tipo de matéria existe nas condições extremas encontradas no interior de uma destas estrelas.

É expectável, também, que outro tipo de eventos possa ser observado, como, por exemplo, o colapso de estrelas que origina supernovas. Em qualquer dos casos, o aumento de estatística irá informar-nos sobre as populações de objetos compactos no Cosmos, sobre se os BNs são adquadamente descritos pela RG e pela solução de Kerr, ou se há desvios. É de recordar que, na história da física, pequenos desvios abriram grandes portas. Foi assim, por exemplo, com a precessão anómala do periélio de Mercúrio, que abriu a porta à RG, ou o desvio de Lamb na estrutura fina do átomo de hidrogénio, que abriu a porta à eletrodinâmica quântica, ou ainda a deteção das pequenas anisotropias da radiação cósmica de fundo, que proporcionou uma janela para a formação de estruturas no Universo primordial.

A médio prazo, a astronomia das OGs terá mais cores! Em 2034 está previsto o lançamento do interferómetro espacial LISA (evolved Laser Interferometer Space Antenna)[45]. O conceito é o de um interferómetro como o LIGO, mas, em vez de os braços terem alguns kms, terão uma unidade astronómica de comprimento. Isto permite que a LISA seja sensível a frequências consideravelmente mais baixas, e por isso objetos muito mais massivos, como os BNs supermassivos que sabemos existir no centro da maioria das galáxias.

Um detetor no espaço, onde criogenia não é necessária e onde não há ruído sísmico terá outras vantagens, nomeadamente maior sensibilidade, e permitirá testar vários conceitos de física fundamental[46]. Juntamente com a diferente banda de sensibilidade, permitirá ver eventos em diferentes bandas do espectro de OGs (diferentes “cores”!). Por exemplo, um evento como GW150914, cerca de 5 anos da coalescência, quando os BNs estão mais afastados emite OGs que seriam detetáveis pela LISA, e cuja deteção permite prever o exato instante, 5 anos depois, quando irá haver uma colisão detetável pelos observatórios terrestres. Pequenos desvios à RG, que impliquem pequenos desvios na emissão de OGs, serão detetáveis pela informação conjunta do observatório espacial e dos observatórios terrestres. A astronomia de OGs tornar-se-á de banda larga.

Referências

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  39. ABBOTT, R. et al. GW190521: A Binary Black Hole Merger with a Total Mass of 150 M, Phys. Rev. Lett. 125, 101102. 2020.
  40. Esta lacuna teórica no espectro de massas de BNs denomina-se “pair instability supernova gap”. Ver a Ref. 35 para mais detalhes.
  41. NARAYAN, R. & MCCLINTOCK, J. E. Observational Evidence for Black Holes, arXiv:1312.6698.
  42. CALDERÓN BUSTILLO et al. The (ultra) light in the dark: A potential vector boson of 8.7*10-13 eV from GW190521, arXiv:2009.05376.
  43. https://gwcenter.icrr.u-tokyo.ac.jp/en/.
  44. https://www.ligo-india.in/.
  45. https://www.elisascience.org/.
  46. BARAUSSE et al. Prospects for Fundamental Physics with LISA, Gen. Rel. Grav. 52, 81, arXiv: 2001.09793. 2020.


Criada em 1 de Novembro de 2020
Revista em 2 de Novembro de 2020
Aceite pelo editor em 15 de Dezembro de 2020