Ondas de gravidade em fluidos

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Referência : Lage, E., (2022) Ondas de gravidade em fluidos, Rev. Ciência Elem., V10(3):038
Autor: Eduardo Lage
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2022.038]
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[editar] Resumo

Atirar uma pedra a um tanque ou o pingar de uma gota numa bacia com água são excelentes oportunidades para se observarem e estudarem as ondas de gravidadea, um importante tópico da mecânica de fluidos[1]. Estes exemplos não podem esquecer que este conceito também se aplica a ondas no mar, a rios ou lagos, a diversos fenómenos atmosféricos ou simplesmente ao fluido que enche um copo ou uma proveta[2].



Uma onda de gravidade é um fenómeno periódico, no tempo e no espaço, que se manifesta na superfície de separação de dois fluidos, sendo água e ar os mais comuns pelo que serão, aqui, considerados como exemplos típicos. Em equilíbrio no campo gravítico da Terra, a superfície que separa os dois fluidos é plana e horizontal (para distâncias curtas comparadas com o raio da Terra), servindo como referência, ficando a água abaixo e o ar acima deste plano. Nesta primeira abordagem, o ar serve, apenas, para manter uma pressão atmosférica que se admite ser constante e uniforme na superfície de separação — mais adiante, será discutido qualitativamente o efeito que uma onda de gravidade tem no ar. A água é considerada um fluido incompressível (i.e., densidade constante), sem viscosidade.

Uma pequena perturbação na superfície afastá-la-á do plano de referência, elevando-a acima do plano numas zonas e baixando-a noutras zonas. Imaginemos dois pontos na água à mesma distância do plano de referência (FIGURA 1).


FIGURA 1. Onda de gravidade num canal ou tanque.

O ponto A, situado abaixo de uma elevação instantânea da superfície de separação, apresenta uma maior pressão hidrostática que a verificada no ponto B, localizado abaixo de uma depressão da mesma superfície. Esta diferença de pressões empurra a água de A para B, baixando a superfície em A e subindo-a em B, originando, assim, uma propagação destas alterações na superfície — esta propagação é a onda de gravidade. Começaremos por estudar o caso mais simples: ondas longas em águas rasas, conceitos que se tornarão precisos mais adiante. Designamos por H a profundidade da água, i.e., a distância do plano de referência ao fundo, suposto plano e horizontal, onde assenta a água. Iremos, aqui, apenas considerar que a onda de gravidade se propaga numa única direção que tomaremos para eixo x; o eixo z tem a direção vertical; e o eixo y, que não desempenhará qualquer papel nesta abordagem, é perpendicular aos anteriores, podendo admitir-se que a água está confinada a um canal ou um tanque, de largura b.


FIGURA 2. Parametrização de uma onda de gravidade.

Designamos por ζ(x,t) a elongação instantânea que a superfície de separação apresenta num dado ponto e num dado instante: se ζ>0(ζ<0), o nível da água está acima (abaixo) do plano de referência. Admitimos ser ζH: trata-se, pois, de uma pequena perturbação em relação ao equilíbrio. O movimento do fluido faz-se, essencialmente, na direção x: designamos por vx(x,t) essa velocidade, ignorando quer a componente vz, quer qualquer dependência de vx com a profundidade, dado esta ser pequena (“águas rasas”), por hipótese. Nestas condições, as equações que regem o movimento do fluido deduzem- -se facilmente. Para isso, consideremos a porção de fluido instantaneamente situado em [xδx2,x+δx2], como se mostra na FIGURA 2. Então:

a) Conservação de massa

A massa situada no domínio indicado é δM=ρb(H+ζ(x,t))δx, onde ρ é a massa específica do fluido (água). Deste modo, a conservação de massa impõe que, durante um pequeno intervalo de tempo δt, o aumento da massa δM seja igual à massa que entra naquele domínio. Ora, em xδx2, entra a massa:


ρb(H+ζ(xδx2,t))vx(xδx2)δtρbHvx(xδx2,t)δt


e em x+δx2 sai a massa ρbHvx(x+δx2,t)δt. Então:


δtddtδM=δtρbζtδx=ρbHδt[vx(xδx2,t)vx(x+δx2,t)]=ρbHδtvxxδx


Isto é:


ζt=Hvxx (1)


b) Lei fundamental da dinâmica

Ignorando a tensão superficial, que será considerada mais adiante, a pressão no interior da água é suposta ser a pressão hidrostática, que deve reduzir-se à pressão atmosférica (pa) na superfície de separação, i.e., p=pa+pg(ζ(x,t)z). Então:


ρvxt=px=pgζx


Isto é:


vxt=gζx (2)


Combinando as equações 1 e 2, obtém-se:


2ζt2=c202ζx2 (3)


onde:


c0=gH (4)


é a velocidade de propagação das ondas de gravidade nas condições referidas. A velocidade do fluido vx satisfaz à mesma equação 3, conhecida genericamente por equação de onda[3] (a uma dimensão espacial). Note-se a ausência de dispersão (c0 é uma constante), em contraste com o que acontece quando se considera a tensão superficial ou profundidades arbitrárias, como se verá adiante.

Antes de prosseguirmos, é conveniente analisar a componente vz do campo de velocidades que, recorde-se, foi ignorada. Tal será justificado se for v<vx. Ora, vz deve anular-se no leito da água (i.e. z=H) e atingir o seu maior valor, vz=˙ζ, na superfície de separação. Então, podemos ignorar vz se for |˙ζ||vx| ou, pela equação 1, H|vxx||vx|. Se vx variar periodicamente numa distância λ, como acontece numa onda, então vxxvxλ. Assim, a condição anterior fica λH, o que justifica a designação de “ondas longas em águas rasas”.

Tem muita importância e interesse analisar as soluções harmónicas da equação 3. Estas soluções dependem do tempo através das funções trigonométricas seno ou co-seno. Como a equação 3 é linear, é válido o princípio da sobreposição pelo que podemos genericamente estudar soluções do tipo onda plana e monocromática:


ζ(x,t)Re[ˆζ0eikxxiωt] (5)


onde ˆζ0 é a amplitude (complexa) da onda, ω é a frequência angular e kx é o vetor de onda. Observemos que estas soluções são periódicas no tempo com o período:


T=2πω (6)


sendo habitual designar por frequência o inverso do período. Analogamente, vemos que ζ(x,t) é espacialmente periódica, sendo o período espacial conhecido por comprimento de onda (o seu inverso é o número de onda).


λ=2πkx (7)


Inserindo a expressão (5) na equação 3, obtemos a relação de dispersão:


kx=±ωc0 (8)


No caso presente, a relação é linear e a ela nos referimos pela frase “ondas sem dispersão”, como também acontece em ondas acústicas e eletromagnéticas (no vazio), mas não é o caso geral. É fácil ver que a solução kx>0 representa uma onda que se propaga para a direita, enquanto kx<0 representa uma onda que se propaga para a esquerda. Aceitando kx>0, a fase da onda de amplitude é a função:


ϕ(x,t)=kxxωt


Vemos que a fase em (x,t) é a mesma em (x+δx,t+δt) se δx=ωkxδt; assim, ωkx é, genericamente, a velocidade de propagação de fase, sendo, no caso presente, igual a c0.

Usando a equação 4, vemos que esta velocidade é 1m/s para H=10 cm (onda de lavatório), 10 m/s para H=10 m (onda de mar) e 200 m/s para H=4000 m (tsunami).

Não se deve confundir a velocidade de fase da onda com a velocidade do fluido — esta oscila sinusoidalmente e o seu valor depende das condições iniciais; aquela representa a velocidade de propagação dos máximos (ou mínimos) da amplitude à superfície.

A propagação de uma onda de gravidade faz-se acompanhar de uma propagação de energia. De facto, a energia contida, num dado instante, entre os planos verticais x=x1 e x=x2>x1 é constituída por duas parcelas:

1.ª Energia cinética


K(t)=x2x1dx12ρbHv2x


2.ª Energia potencial gravítica


U(t)=x2x1dxζHdzρbgz=x2x1dx12ρgb(ζ2H2)


Assim:


E(t)=K(t)+U(t)=12x2x1dxbρ(Hv2x+g(ζ2H2))


Então:


dEdt=x2x1dxbρ(Hvxvxt+gζζt)=x2x1dxbρ(Hgvxζx+Hgζvxx)=x2x1dxbρgHx(ζvx)


Aqui, usamos as equações 1 e 2 para obter o resultado final. Identificamos o fluxo de energia:


J(x,t)ρgbHζ(x,t)vx(x,t)=ρbc20ζ(x,t)vx(x,t) (9)


Com efeito, o resultado anterior pode escrever-se:


dEdt=J(x1,t)J(x2,t)


que, por palavras, se lê: o aumento, por unidade de tempo, da energia no intervalo [x1,x2] é igual à energia que entra em x1 menos a energia que sai em x2.

Para calcularmos este fluxo, temos de usar as representações reais dos campos ζ e vx. Mas se quisermos calcular a média sobre um período de oscilação, o resultado é bastante simples:


J(x)=12ρbc20Re[ζvx] (10)


(o asterisco representa complexo conjugado). Considerando, por exemplo, a onda monocromática atrás escrita, começamos por notar que a equação 2 dá vx=kxgωζ=gc0, pelo que:


J(x)=12ρbgc0|ˆζ0|2 (11)


Uma onda de 1 m de amplitude no mar com a profundidade de 4000 m transporta a mesma energia que uma onda de ~ 4.5 m quando a profundidade é de 10 m. É esta a força destruidora de um tsunami. No canhão da Nazaré, a amplitude ainda é maior porque a largura b torna-se muito menor nas proximidades da praia — a onda fica encurralada, sendo obrigada a subir em altura.


O efeito da tensão superficial

A tensão superficial é uma força que se manifesta na superfície de um fluido e que tem origem na parte atractiva das forças moleculares. A sua caracterização é simples: imaginemos uma curva fechada na superfície — em cada elemento da linha, de comprimento dl, a tensão superficial é a força exercida pela parte da superfície no exterior da linha, sendo tangente à superfície e perpendicular à linha, dirigida para o exterior da curva, com o valor σdl, onde σ é uma constante. Consideremos a FIGURA 2 e atentemos na porção de superfície em [xδx2,x+δx2]. A tangente à linha, em qualquer ponto, é o vetor (1,0,ζ(x,t)), onde a plica indica derivada em ordem a x, podendo considerar-se normalizada à unidade porque temos vindo a desprezar termos quadráticos em ζ. Assim, a tensão superficial é σb(1,0,ζ(x+δx2,t)), no extremo direito daquele intervalo, e σb(1,0,ζ(xδx2,t)), no extremo esquerdo. A resultante destas forças é, pois, σbζ"δx segundo o eixo vertical.

Devido a isto, a pressão exercida pelo fluido num ponto da superfície não é mais igual à pressão atmosférica, tendo-se, agora, p(x,ζ)bδx+σbζ"δx=pabδx, i.e., p(x,ζ)=paσζ". Assim, no interior do fluido, o campo hidrostático da pressão é p(x,z)=p(x,ζ)+pg(ζz)=paσζ+pg(ζz), o que modifica a equação 2, obtendo-se:


ρvxt=px=ρgζx+σ3ζx3


A equação 1, exprimindo a conservação de massa, não é modificada. Eliminando a velocidade entre estas equações, obtemos:


2ζt2=H[g2ζx2σρ4ζx4]


Para uma onda plana monocromática, é ζeiωt+ikxx, deduzindo-se a relação de dispersão:


ω2=gHk2x(1+a2k2x) (12)


onde a=σρg é conhecida por constante capilar. Existe, pois, dispersão de ondas que, porém, pode ser ignorada se kxa1. Para a água é σ=72.8x10-3 N/m, pelo que a ≃3 mm.

Assim, a tensão superficial não pode ser ignorada para comprimentos de onda inferiores a 2πa1.8 cm. As ondas de gravidade na água de uma bacia ou no lavatório são, essencialmente, dominadas pela tensão superficial — sendo designadas por ondas gravitocapilares.


Generalização para profundidade arbitrária

Neste caso, temos de considerar as duas componentes da velocidade da água, pelo que a equação de movimento fica:


ρvt=p+ρg=(ppa+ρgz) (13)


No segundo membro, incluímos, por comodidade, a pressão atmosférica, constante; e vemos que, sendo este segundo membro um gradiente, então também se terá:


v=φ (14)


Esta função φ é designada por potencial velocidade. Assim, substituindo na equação 13, tem-se:


ρφt=(ppa)ρgz (15)


A incompressibilidade assumida para a água traduz-se por:


v=0Δφ=0 (16)


Procuremos, agora, soluções em que, à superfície da água, se tenha um deslocamento tal como na equação 5. Será, então, de esperar que o potencial velocidade apresente a mesma dependência no tempo e na coordenada x, i.e., da forma:


φ=Re[ˆf(z)eikxxiωt] (17)


Substituindo na equação 16, obtém-se:


d2ˆfdz2k2xˆf=0


A solução geral desta equação é uma combinação linear de seno e co-seno hiperbólicos. Ora, sabemos que, no leito da água (z=H) deve ser vz=0, i.e.,


(φz)z=H=0(ˆfz)z=H=0


Assim, a solução procurada é:


ˆf=ˆf0ch(kx(z+H))


Na superfície livre da água (z=ζ), tem-se:


vz(x,ζ,t)=˙ζ(φz)z=ζ=˙ζ (19)


Usando as equações 5, 17 e 18, e aceitando ser ζH, obtém-se:


kxˆf0sh(kxH)=iωˆζ0


E, da equação 15, tira-se:


iωˆf0ch(kxH)=gˆζ0


Estas duas equações fornecem a relação de dispersão:


ω2=gkxth(kxH) (20)


Vemos, aqui, outro exemplo de uma relação não linear entre a frequência angular e o vetor de onda, originando dispersão das ondas com diferentes frequências. E vemos que a solução antes estudada é um caso particular desta: ondas longas em águas rasas significa, apenas, kxH1.

Tem interesse estudar com algum detalhe o campo de velocidades. Admitindo, para simplificar, que ˆζ0 é real, deduz-se das equações 14 e 17:


vx=φx=gkxζ0ωch(kx(z+H))ch(kxH)cos(kxxωt)


vz=φz=gkxζ0ωch(kx(z+H))sh(kxH)sin(kxxωt)


Consideremos a vizinhança de um ponto (x0,z0) no interior da água, podendo, assim, substituir estes valores nos segundos membros das equações acima. Para uma “partícula” de água nesta vizinhança, a sua trajetória é definida por:


dxdt=vx(x0,z0,t)=gkxζ0ωch(kx(z0+H))ch(kxH)cos(kxx0ωt)


dzdt=vz(x0,z0,t)=gkxζ0ωsh(kx(z0+H))ch(kxH)sin(kxx0ωt)


Assim, por simples integração, obtém-se a trajetória:


x(t)x0=gkxω2ζ0ch(kx(z0+H))ch(kxH)sin(kxx0ωt)


z(t)z0=gkxω2ζ0sh(kx(z0+H))ch(kxH)cos(kxx0ωt)


Então:


(x(t)x0ζ0ch(kx(z0+H)))2+(z(t)z0ζ0sh(kx(z0+H)))2=(gkxω2ch(kxH))2


As trajetórias são elipses, alongadas na direção de progressão da onda à superfície (eixo x) e o eixo menor é tanto mais pequeno quanto maior a profundidade (z0 mais negativo), anulando-se no leito da água (FIGURA 3). À superfície, onde esta ondulação é mais forte, ela é bem sentida por quem boiar, no mar, longe da zona de rebentação.


FIGURA 3. Trajetórias das partículas e sua variação com a profundidade. A linha azul representa a progressão da onda à superfície.

Nota final

O ar, acima da água, apenas serviu, no exposto, para fixar a pressão atmosférica. Contudo, a situação é bem mais interessante: as vibrações da onda de gravidade na superfície induzem ondas sonoras no ar. Para uma onda de gravidade plana e monocromática, como as que consideramos, a frequência angular ω e o vetor de onda kx impõem o padrão espaço temporal das vibrações à superfície, exigindo esses valores para a onda sonora. Porém, esta propaga-se segundo x e z: assim, a onda sonora é representada por eiωt+ikxx+ikzz e tem a relação de dispersão ω2=c2s(k2x+k2z), onde cs é a velocidade do som, da ordem de 340m/ s.

Ora, com ω=c0kx) para a onda de gravidade, então deduzimos que k2z=ω2(1c2s1c20).

Habitualmente, é cs>c0, pelo que kz é imaginário: a onda sonora amortece à medida que se afasta da superfície de separação. Na situação oposta, cs< c0, a onda sonora propaga- se sem amortecimento, transportando energia das vibrações na superfície: agora, é a onda de gravidade que experimenta atenuação! Não prosseguiremos esta interessante análise.


Notas

a) Não confundir com as ondas gravitacionais da Relatividade Geral

b) Podia adicionar-se a (15) uma constante que só poderia depender do tempo, mas tal não tem importância porque só as derivadas espaciais têm significado físico: são as componentes da velocidade

[editar] Referências

  1. LAGE, E., Mecânica dos Fluidos, Rev. Ciência Elem., V6(4):084. (2018). DOI: 10.24927/rce2018.084.
  2. LAGE, E., Ondas, , V8(1):016. (2020). DOI: 10.24927/rce2020.016.
  3. LAGE, E., Fluidos, Rev. Ciência Elem., V6(4):071. (2018). DOI: 10.24927/rce2018.071.


Criada em 3 de Março de 2021
Revista em 19 de Março de 2021
Aceite pelo editor em 14 de Outubro de 2022