O paracetamol e a COVID-19
Referência : Remião, F., (2020) O paracetamol e a COVID-19, Rev. Ciência Elem., V8(2):023
Autor: Fernando Remião
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [http://doi.org/10.24927/rce2020.023]
O paracetamol (ou acetaminofeno) é um fármaco de primeira linha recomendado pelos Organismos de Saúde para o tratamento da hipertermia ou febre (temperatura retal ≥ 38.0 ºC), nomeadamente a associada à infeção pelo SARS-CoV-2. Consequentemente, o N-acetil-p-aminofenol (APAP, nome químico para o paracetamol) está presente, enquanto princípio ativo único ou em associação, em várias formas farmacêuticas (comprimidos, xaropes, supositórios...). Embora o paracetamol seja considerado um medicamento seguro quando administrado em doses terapêuticas, pode, no entanto, ser bastante hepatotóxico quando em sobredosagem. A toma deste medicamento deve, por isso, respeitar as dosagens recomendadas, de modo a evitarem-se efeitos adversos graves e até fatais.
O que é o paracetamol
O paracetamol (ou acetaminofeno, designação adotada nos EUA) é um antipirético e analgésico, integrado no grupo dos “Inibidores não seletivos da ciclooxigenase (COX)”[1]. Apesar de apresentar fracas propriedades anti-inflamatórias, é dos princípios ativos (isoladamente ou em associação) de maior administração terapêutica a nível mundial. Em Portugal é comercializado enquanto medicamento não sujeito a receita médica, em diversas formas farmacêuticas, nomeadamente comprimidos (efervescentes ou não), xaropes, supositórios e cápsulas.
Quimicamente (FIGURA 1), o paracetamol é o N-acetil-p-aminofenol (APAP) ou N-(4-hidroxifenil)etanamida (nome IUPAC), tendo a fórmula química C8H9NO2 e o peso molecular de 151,16g/mol[2]. Apresenta-se, à temperatura ambiente, como um sólido de cristais brancos, sem cheiro, mas de sabor amargo. É pouco solúvel em água fria, sendo, no entanto, bastante solúvel em água quente ou em álcool e quando em solução aquosa saturada confere-lhe um pH ligeiramente ácido (pH=6).
Sua história e atual enquadramento terapêutico
O paracetamol foi sintetizado pela primeira vez ainda nos finais do século XIX, mas só foi comercializado na segunda metade do século XX[3]. No entanto, o paracetamol suscitava muitas preocupações à data, pois enquanto molécula era um metabolito da fenacetina e da acetanilida, fármacos antipiréticos e analgésicos que tinham sido abandonados como consequência da sua toxicidade, nomeadamente pela indução de metahemoglobinemia (com inerente redução da oxigenação sanguínea). Só nos anos 70 ficou provada a sua segurança quando administrado em doses terapêuticas. Passou assim a ser massivamente utilizado, principalmente para o tratamento da febre e dores ligeiras a moderadas. A dose recomendada em adultos varia entre 500mg a 1000mg, a cada 4-6h até um máximo de 4g/24h (em crianças as doses diárias recomendadas e máximas, variam conforme a idade), resultando num rápido efeito terapêutico (pico máximo ao final de 30 a 45min) que pode durar até 2h a 4h após administração.
Qual o mecanismo de ação antipirética?
Um dos principais mecanismos da febre decorre de uma alteração da atividade de regulação do hipotálamo, que funciona como um termostato. Esta região na base cerebral e do tamanho de uma amêndoa é crucial na homeostase do organismo a vários níveis, nomeadamente no controlo da ingestão de alimentos e água, do ritmo circadiano (comportamento no dia/noite) e também da temperatura corporal. Nesta última função, em situações particulares (ex.: durante infecções) e sob influência de uma molécula denominada prostaglandina E2 (PGE2), o hipotálamo aumenta a temperatura a atingir (tal como na regulação de um termostato) usando o sistema nervoso e endócrino no sentido de criar (ex.: contração muscular) e acumular calor (ex.: vasoconstrição).
Para ser possível compreender o mecanismo de ação do paracetamol é importante destacar que a PGE2 é um dos metabolitos (entre outros, com atividade inflamatória) do ácido araquidónico (ARA), como se pode observar na FIGURA 2. O ARA é um ácido gordo poliinsaturado resultante da ação da enzima fosfolipase A2 (PLA2) na hidrólise dos fosfolipídios presentes nas membranas das células do endotélio dos vasos sanguíneos (nomeadamente a nível cerebral). Esta degradação ocorre como consequência da presença de pirogénios circulantes no sangue, que podem ser endógenos (libertados pelo sistema imune) ou exógenos (ex.: bactérias ou vírus como o SARS-CoV-2... que por sua vez podem ativar a formação de pirogénios endógenos). É, precisamente, na metabolização do ARA que dá origem ao PGE2, que o paracetamol atua como antipirético[4]. Mais especificamente, o ARA é metabolizado pela Prostaglandina-H-sintetase (PHS) em 2 passos: num primeiro passo o ARA é oxidado pela enzima COX a prostaglandina G2 (PGG2) e, no segundo passo, a PGG2 é reduzida a prostaglandina H2 (PGH2) por uma peroxidase. O paracetamol parece exercer o seu efeito por inibição desta peroxidase em particular no sistema nervoso central. Assim, a inibição da síntese da PGH2, que por sua vez daria origem à PGE2, justifica a ação antipirética do paracetamol.
Em termos terapêuticos será interessante comparar o mecanismo de ação do paracetamol com os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs), como sejam o ácido acetilsalicílico ou o ibuprofeno, e até com os corticosteróides. Os AINEs atuam por inibição do primeiro passo da ação da PHS, ou seja da atividade da COX, podendo alguns deles ser específicos para a isoenzima COX-2 mais associada aos processos inflamatórios, quer a nível central como periférico. Já o paracetamol, que inibe o segundo passo, tem baixa capacidade de ação a nível periférico, pois as lesões inflamatórias aumentam os níveis de ARA e de peroxidase, o que reduz a eficiência da ação inibitória do paracetamol e a sua capacidade anti-inflamatória. Por outro lado, os compostos esteróides, como por exemplo a corticosterona, têm uma atividade anti-inflamatória, entre outros mecanismos, pela inibição da PLA2, responsável pela formação do ARA.
O perigo das sobredosagens e suas consequências
Apesar da grande segurança do paracetamol nas doses terapêuticas, este fármaco é muito utilizado em associação e em várias formas farmacêuticas, pelo que não é difícil ultrapassar a dosagem máxima diária de 4g (via oral e parenteral). Os sintomas de sobredosagem ocorrem nas primeiras horas após a toma do medicamento e incluem náuseas, vómitos, sonolência e mal estar, a que se segue dor abdominal de ligeira a intensa (após 24h) e, nas situações mais graves, icterícia (após 48h)[5]. A hepatomegalia e o aumento das transaminases e bilirrubina confirmam os danos hepáticos (também ocorrem lesões renais) que podem resultar na morte por falência hepática aguda.
Na realidade, a intoxicação por paracetamol é relativamente comum. Segundo dados do Centro de Informação Antivenenos (CIAV), em 2017 houve cerca de um milhar de suspeitas de sobredosagem por paracetamol em Portugal, um terço dos casos em crianças[6]. Será ainda de destacar que o paracetamol é a segunda causa de suspeita de intoxicação em adultos em Portugal (a seguir aos detergentes). A nível internacional, por exemplo nos EUA, as intoxicações por paracetamol originam, anualmente, dezenas de milhar de ocorrências hospitalares, muitas delas resultando em transplantes hepáticos e em fatalidades[7], [8].
Destoxificação/Bioativação
O mecanismo de destoxificação e de bioativação do paracetamol é dos mais estudados em Toxicologia e é extremamente pedagógico na compreensão da importância do processo metabólico. Este processo ocorre em grande medida no fígado e é muito importante na distinção entre a atividade terapêutica e tóxica dos fármacos. Na realidade, a atividade tóxica do paracetamol está diretamente ligada à formação, por bioativação, da N-acetil-p-benzoquinonaimina (NAPQI). A NAPQI é um metabolito reativo que quando em grandes quantidades exerce um efeito citotóxico devastador a nível hepático, por induzir fenómenos de stresse oxidativo, de inativação proteica ou ainda por estimular respostas imunes intensas que originam a morte celular[9].
Será assim importante compreender em que circunstâncias poderemos ter um efeito tóxico deste fármaco. O paracetamol apresenta várias vias metabólicas (FIGURA 3). Em doses terapêuticas, as vias preferenciais são a conjugação com sulfato e ácido glucurónico (processos metabólicos de destoxificação do paracetamol). Nesta condição, os respetivos metabolitos são inativos, muito hidrossolúveis e facilmente eliminados na urina. Para além disso, nestas circunstâncias, a formação de NAPQI, por oxidação do paracetamol catalisada pelo citocromo P450 (complexo enzimático fundamental dos processos metabólicos), é minoritária, embora corresponda à via de bioativação metabólica. A ajudar ao processo de destoxificação, o metabolito NAPQI é conjugado com um importante tripéptido protetor (glutationa, GSH) sendo este posteriormente também eliminado na urina, na forma de mercapturato.
Assim, tudo corre bem quando estamos na presença de doses terapêuticas e temos a nossa capacidade metabólica de conjugação com sulfato, glucuronídeo e glutationa funcional e não esgotada. O problema ocorre aquando da saturação destes processos destoxificantes, como acontece numa sobredosagem por paracetamol. O esgotamento dos co-fatores conjugantes sulfato e glucuronídeo ou a indução do citocromo P450 (ex.: por consumo de álcool) leva a um aumento da formação da NAPQI esgotando rapidamente a GSH. Nestas circunstâncias, este metabolito reativo fica livre para exercer o seu efeito tóxico a nível hepático, do qual resulta uma necrose massiva dos hepatócitos. Embora, nas primeiras horas, as intoxicações com paracetamol possam ser tratadas com algum sucesso pela administração intravenosa de N-acetilcisteína (percursor da GSH), muitas acabam por implicar o transplante hepático ou, em última instância, resultar na morte por falência hepática.
Assim, compreendendo este mecanismo, será fácil perceber a importância de garantir o cumprimento das doses máximas recomendadas de paracetamol, mas também:
- assegurar uma alimentação rica e variada que nos permita manter uma atividade metabólica (nomeadamente de reações de conjugação) estável e capaz de destoxificar o paracetamol;
- evitar o consumo de álcool ou outros produtos que possam comprometer a função hepática ou induzir a bioativação do paracetamol;
- ter particular cuidado nos idosos e nos pacientes com doenças hepáticas porque podem ter comprometimento da função metabólica.
Conclusões
Os organismos de saúde recomendam o paracetamol como medicamento preferencial para o tratamento da febre, nomeadamente a resultante da COVID-19. No entanto, é fundamental compreender que a segurança deste medicamento exige o cumprimento dos limites das doses máximas diárias e particulares cuidados com a alimentação e o consumo de álcool. No caso da dose terapêutica do paracetamol não ser suficiente para controlar a febre, dever-se-á procurar alternativas terapêuticas junto de um médico. Só assim poderemos ter uma boa recuperação do estado febril, evitando as consequências tóxicas de uma sobredosagem por paracetamol.
[editar] Referências
- ↑ Prontuário Terapêutico on-line, Infarmed, I.P.. 2020.
- ↑ PubChem, National Library of Medicine. 2020
- ↑ ROBERT, G. Paracetamol IN Goldfrank’s Toxicologic Emergencies, by Robert S. Hoffman, Mary Ann Howland, Neal A. Lewin, Lewis S. Nelson, Lewis R. Goldfrank. pp 850-877, McGraw Hill, New York. 2015.
- ↑ ROBERT, G. Paracetamol IN Goldfrank’s Toxicologic Emergencies, by Robert S. Hoffman, Mary Ann Howland, Neal A. Lewin, Lewis S. Nelson, Lewis R. Goldfrank. pp 850-877, McGraw Hill, New York. 2015.
- ↑ ROBERT, G. Paracetamol IN Goldfrank’s Toxicologic Emergencies, by Robert S. Hoffman, Mary Ann Howland, Neal A. Lewin, Lewis S. Nelson, Lewis R. Goldfrank. pp 850-877, McGraw Hill, New York. 2015.
- ↑ CIAV – Centro de Informação Antivenenos Categoria - INEM, 2018.
- ↑ GUMMIN, D, et al. Annual Report of the American Association of Poison Control Centers’ National Poison Data System (NPDS): 36th Annual Report [published correction appears in Clin Toxicol (Phila), 2019 Dec;57(12):e1]. Clin Toxicol (Phila). 2019.
- ↑ SUNEIL, A. et al. Acetaminophen Toxicity, Treasure Island (FL): StatPearls Publishing. 2020.
- ↑ PARKINSON, A. et al. Biotransformation of xenobiotics, in Casarett and Doull`s Toxicology The basis science of poisons (Klaassen CD ed) pp 185-366, McGraw Hill, New York. 2013.
Recursos relacionados disponíveis na Casa das Ciências:
Criada em 7 de Maio de 2020
Revista em 3 de Junho de 2020
Aceite pelo editor em 23 de Junho de 2020