Identificação genética através de análises de DNA
Referência : Amorim, A., (2019) Identificação genética através de análises de DNA, Rev. Ciência Elem., V7(4):066
Autor: António Amorim
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [http://doi.org/10.24927/rce2019.066]
O impacto da série de TV CSI na opinião pública (e nos tribunais!) foi tão significativo que se tornou um objeto de estudo nas ciências sociais, sob os nomes de Efeito ou Síndrome CSI. Um dos seus aspetos mais problemáticos consiste no exagero do poder das análises genéticas e a mitificação do DNA como chave universal para a resolução de todos os problemas. A realidade é bem outra, como vamos demonstrar, evidenciando as possibilidades e os limites das análises genéticas às questões forenses.
A Genética Forense pode definir-se como sendo a aplicação da genética à resolução (e à prevenção) de conflitos legais, usando amostras biológicas (humanas e não-humanas) para a análise populacional de diferenças inter- e intraespecíficas. O âmbito de aplicação é, portanto, vasto e ambicioso, não se limitando à clássica criminalística e abrangendo cada vez mais, particularmente quando usando DNA não-humano, questões pouco conhecidas, embora por vezes já rotineiras, como a deteção da fraude alimentar.
A primeira confusão que importa desfazer sobre o poder da genética resulta de esta ciência e a sua aplicação forense ser muito diferente – quase se diria oposta – à das ciências forenses tradicionais. Na verdade, as ciências forenses clássicas baseiam a sua intervenção num pressuposto (pomposamente chamado princípio da singularidade discernível) que consiste em admitir que quaisquer pessoas ou objetos são únicos e, portanto, os vestígios ou marcas que produzem são também individuais e distinguíveis. Ou seja, quando dois vestígios (por exemplo, impressões digitais, ou estrias de disparo em projéteis) são idênticos, terão sido resultado do mesmo indivíduo (pessoa ou arma de fogo) e quando distintos, provocados por indivíduos ou objetos diferentes. Ora a genética procede de forma totalmente diversa, uma vez que não individualiza, mas apenas categoriza, classificando os objetos em tipos ou grupos (como os clássicos grupos sanguíneos ou sequências de DNA). Podemos contrastar estas duas formas de raciocínio:
Resulta claro que, não fazendo a genética forense individualização categórica, conduz, sempre, para uma mesma observação (ou conjunto de observações – um perfil genético ou sequência de DNA), a duas interpretações alternativas, cuja probabilidade ou frequência deverá ser calculada.
Vamos tentar demonstrar como isso é feito sem recorrer a demasiados conhecimentos prévios de genética, quer teóricos quer tecnológicos, uma vez que o que se pretende nesta (tentativa de) comunicação com não especialistas será fazer compreender o enquadramento e o modo de atuar da genética forense, desmontando a mitologia associada ao efeito CSI, complementando (e corrigindo) uma nota publicada num site quase homónimo (O Efeito CSI: quanto devo confiar em evidências forenses?). Também se evitará o recurso excessivo a matemática, probabilidades e estatística, que tanto assustam, infelizmente, os biólogos.
Um facto, duas (ou mais) opiniões
O que caracteriza uma situação forense é a existência de (potencial ou atual) conflito de interpretação quanto à causa ou autoria de um facto cuja realidade não é objeto de discussão: não há dúvidas que Fulano morreu vítima de agressão, que uma criança nasceu, etc. A disputa nasce da autoria ou responsabilidade a associar a esses factos: Será Sicrano o pai da criança? (ele discorda!); foi Beltrano o autor da agressão que vitimou Fulano (ele nega terminantemente, mas a Polícia acha o contrário)?
Suponhamos (para que a Genética forense possa entrar em cena e dar o seu contributo), que neste último caso foi encontrada no local do crime uma ponta de cigarro que, uma vez analisada, revelou um determinado perfil genético (FIGURA 1). Analisada igualmente uma amostra de referência do suspeito Beltrano (pela mesma metodologia e para os mesmos marcadores genéticos), verifica-se que coincidem. Que concluir?
Com vimos atrás, a Genética Forense não individualiza e, portanto, a inferência pericial é a de que: (1) são do mesmo indivíduo, ou (2) de dois indivíduos distintos com o mesmo perfil genético.
Se assim é, como pode uma conclusão destas auxiliar uma decisão judicial? O “truque” será utilizar a teoria da genética populacional para calcular a frequência dos resultados obtidos, assumindo as duas explicações alternativas.
Ou seja, a frequência esperada de uma mesma observação (dois perfis genéticos idênticos em duas amostras distintas) é diferente conforme admitimos uma explicação ou outra. Então, se as duas amostras provêm do mesmo indivíduo (Hipótese 1, \(H1\), a frequência que procuramos calcular é simplesmente a de, ao acaso, encontrarmos na população relevante o perfil em causa (simbolizemos por \(f\)). Pelo contrário, se correspondem a dois indivíduos (Hipótese 2, \(H2\)), a frequência que procuramos é a de um par de indivíduos, igualmente ao acaso na mesma população terem esse mesmo perfil (o que será \(f\times f=f^{2}\). Estamos então em condições de comparar as duas através de uma razão; para isso simbolizamos da seguinte forma: a primeira - a frequência esperada dos resultados segundo \(H1\) - será \(F|H1\) (que se lê: \(F\) dado \(H1\) e a segunda \(F|H2\) (\(F\) dado \(H2\)). Ora, como vimos atrás, \(F|H1=f,F|H2=f^{2}\) e a razão que as compara será
\(R=\frac{F|H1}{F|H2}=\frac{f}{f^{2}}=\frac{1}{f}\)
Consequentemente, à pergunta feita ao perito – se as duas amostras provêm do mesmo indivíduo, o suspeito Beltrano, este responde (um pouco ao lado, convenhamos) com o seguinte: os resultados obtidos são \(R\) vezes mais frequentes na hipótese de corresponderem ao mesmo indivíduo do que na hipótese de corresponderem a dois indivíduos distintos.
Uma vez que a frequência do perfil é normalmente muito baixa (veja-se o exemplo da TABELA 1), o seu inverso é astronomicamente elevado, o que agrava o risco de má interpretação deste resultado pericial (mais um efeito CSI!). De facto, o que muitas vezes o tribunal infelizmente “lê” naquele texto é que a probabilidade de identidade é (próxima) de 100%, ou, pior ainda, que está praticamente provado que Beltrano é o dador de ambas as amostras (a chamada falácia do condicional transposto).
Não queria terminar sem fazer notar que uma análise mais séria da identificação genética em contexto (mesmo que apenas potencialmente) forense requereria, para além de um aprofundamento dos aspetos teóricos e tecnológicos aqui aflorados, uma abordagem ao papel pericial na investigação e na produção de prova, e aos sistemas judiciais (e a sua heterogeneidade, entre os extremos desde o modelo inquisitorial ao acusatório). Espero que tenha ficado claro que a análise de DNA continuará a ser a base indiscutível da identificação genética, particularmente com fins forenses, bem como no estabelecimento de parentescos biológicos, quaisquer que sejam os progressos técnicos que venham a ser desenvolvidos e aplicados e os problemas éticos e legais que acarretem.
[editar] Referências
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Criada em 16 de Outubro de 2019
Revista em 19 de Outubro de 2019
Aceite pelo editor em 17 de Dezembro de 2019