Capacidades Caloríficas
Referência : Lage, E., (2019) Capacidades Caloríficas, Rev. Ciência Elem., V7(2):032
Autor: Eduardo Lage
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [http://doi.org/10.24927/rce2019.032]
A Capacidade Calorífica de um corpo é a quantidade de calor que é necessário fornecer-lhe para elevar a sua temperatura de uma unidade. Por outras palavras, é a quantidade de energia (na forma de calor) fornecida ao corpo dividida pela grandeza da variação da sua temperatura.
O conceito de capacidade calorífica é um dos mais importantes e mais antigos em Termodinâmica. A designação provém da velha teoria do calórico para a qual o calor era um fluido que passava de um corpo para outro e onde a quantidade trocada dependia das capacidades de armazenamento desse fluido que os corpos apresentariam. O calórico há muito foi abandonado, mas ficou o conceito de capacidade (C), a medida (unidade no S.I.: J/K) da quantidade de calor (δQ) que se tem de fornecer a um corpo para lhe originar uma elevação de temperatura δT: C=δQδT, i.e., quantos Joules são necessários para elevar de 1K a temperatura da substância. Alguns exemplos, referidos a 1Kg: aço (460), granito (800), vidro (40), água (4184). Quando referida a 1 Kg, a capacidade calorífica designa-se por calor específico ou capacidade calorífica mássica. Note-se que, para a água, este resultado é exato porque é a definição da Kcal (1000 calorias). Esta definição é, contudo, insuficiente por ser necessário especificar as condições a que o sistema está sujeito quando recebe calor, sendo comum ser mantido constante o volume (V) ou a pressão (p), assim se definindo a capacidade calorífica a volume constante (CV) ou pressão constante (Cp), respetivamente. Iremos aqui considerar a relação entre estas capacidades caloríficas e expôr o método de Rüchardt que determina experimentalmente γ≡Cp/CV em gases.
Para os sistemas simples que aqui consideramos, o estado de equilíbrio termodinâmico pode ser definido pelo volume (V) e temperatura (T), deduzindo-se a pressão a que está submetido pela equação de estado que relaciona estas três variáveis. Assim, a entropia, uma função de estado, tem V e T como argumentos, pelo que a sua diferencial se escreve:
dS=(∂S∂T)VdT+(∂S∂V)TdV (1)
Aqui, os subscritos indicam a variável que é mantida fixa na derivação.
Comecemos por analisar o caso simples de ser mantido constante o volume. Então, quando o sistema recebe, reversivelmente, a quantidade de calor δQ, a sua entropia aumenta de ∂QT, pelo que:
dS=δQT=(∂S∂T)VdT ⇒ CV=δQδT=T(∂S∂T)V (2)
Suponhamos, agora, que é mantida constante a pressão. Então, a quantidade de calor que o sistema necessita receber para elevar a sua temperatura de δQ é maior que no caso anterior porque parte desse calor é transformado em trabalho pois que, necessariamente, há aumento de volume (dilatação térmica) para ser mantida a pressão. Assim, deverá ser e Cp≥CV, usando a eq. (1) podemos relacionar estas duas capacidades:
dS=CVTdt+(∂S∂V)T(∂V∂T)pdt
Segue-se que a quantidade de calor recebida é:
δQ=TdS=[CV+T(∂S∂V)T(∂V∂T)p]dT ⇒ Cp=CV+T(∂S∂V)T(∂V∂T)p (3)
A equação de estado fornece (∂V∂T)p- abaixo veremos o resultado para um gás perfeito. Mas como calcular (∂S∂V)T? Entra, aqui, todo o poder analítico da Termodinâmica: devemos procurar uma função de estado cuja diferencial se escreve à custa das diferenciais do volume e da temperatura. Essa função de estado não é a energia interna (U) pois que os 1º e 2º Princípios da Termodinâmica nos levam a escrever:
dU=TdS−pdV
Mas esta expressão sugere a forma de encontrarmos o que procuramos 1: considere-se a função F≡U−TS, conhecida por energia livre de Helmholtz. Então:
dF=dU−TdS−SdT=−SdT−pdV (4)
Esta diferencial é exata porque F é uma função de estado, pelo que:
∂∂V(∂F∂T)V=∂∂T(∂F∂V)T
Ora, da eq. (4), obtemos:
(∂F∂T)V=−S (∂F∂V)T=−p
Pelo que a relação anterior fica 2:
(∂S∂V)T=(∂p∂T)V
O segundo membro é conhecido pela equação de estado. Assim, regressando à eq. (3), obtemos:
Cp=CV+T(∂p∂T)V(∂V∂T)p (5)
Esta relação aplica-se a qualquer corpo. Num sólido, por exemplo, a dilatação térmica é muito pequena e pode, muitas vezes, ser ignorada, pelo que Cp≈CV. Não é assim nos gases, como veremos adiante.
Ex.: gás perfeito
A equação de estado é p=nRTV, onde n é o número de moles e R a constante dos gases perfeitos. Então:
(∂p∂T)V=nRV (∂V∂T)p=nRp ⇒ T(∂p∂T)V(∂V∂T)p=TnRVnRp=nR
Assim:
Cp=CV+nR (6)
Que podemos dizer sobre CV? O teorema da equipartição da energia informa que cada termo quadrático na energia de uma molécula contribui com 12RNAT para a energia média da molécula (esta não tem uma energia fixa quando em contacto com a fonte de calor à temperatura T). Então, para as nNA moléculas, cada termo quadrático contribui com 12nRT. Se houver f termos quadráticos na energia da molécula, e admitindo que as moléculas não interagem (gás perfeito!), segue-se que U=f12nRT, pelo que CV=f12nR. Alguns exemplos: num gás monoatómico, é f=3 porque cada átomo só contribui com a energia cinética do movimento, havendo, pois, 3 termos quadráticos correspondentes às 3 componentes da velocidade. Num gás diatómico, para além da velocidade do centro de massa (contribuindo com os mesmos 3 termos para a energia cinética), existem, agora, 2 termos adicionais associados a movimentos de rotação em torno de 2 eixos perpendiculares entre si e perpendiculares à linha que une os átomos. Assim, f=5 se a molécula se comportar como um haltere rígido. Mas se admitirmos que a molécula pode vibrar como um oscilador harmónico, surgem mais 2 termos quadráticos originados nas energias cinética e potencial da “mola” que une os átomos, pelo que f=7. No caso geral, somos, assim, conduzidos, pela eq. (6), à expressão:
Cp=f2nR+nR=(f2+1)nR ⇒ γ≡CpCv=f+2f
A tabela seguinte mostra os valores esperados para diversos modelos.
f | γ | Modelo da molécula |
3 | 5/3 | monoatómico |
5 | 7/5 | haltere |
7 | 9/7 | Diatómica c/vibração |
A tabela abaixo mostra valores de γ obtidos experimentalmente para vários gases. Os resultados deduzidos para um gás perfeito não nos devem iludir: em geral, as capacidades caloríficas variam com a temperatura, fornecendo, desse modo, importante informação sobre o “congelamento” de graus de liberdade moleculares quando, por exemplo, a temperatura diminui. Atente-se no caso da molécula de hidrogénio: acima de 100 ºC, os valores de γ sugerem um modelo haltere, mas a -181 ºC, já a molécula parece não poder rodar!

Um último exemplo considera um modelo simples de um sólido: cada átomo está ligado à sua posição de equilíbrio por uma “mola” (potencial harmónico), o que dá f=6 (3 termos quadráticos na energia cinética e outros 3 termos quadráticos na energia potencial). Assim, para um mole de um sólido será de esperar CV≃3R, o que parece reproduzir a lei de Dulong e Petit (1819), mas apenas para temperaturas elevadas. Contudo, quando se diminui a temperatura, a capacidade calorífica molar diminui rapidamente porque é necessário considerar a quantificação destes osciladores harmónicos, como Einstein mostrou em 1907. Este é um importante tópico que aqui não será mais desenvolvido.
Voltando aos gases, admitamos que as capacidades caloríficas são constantes, independentes da temperatura. Nestas condições, podemos deduzir a equação das adiabáticas, i.e., a relação entre pressão e volume quando o sistema evolui mantendo a entropia constante. De facto, regressando à eq. (1), e com os resultados já obtidos, podemos escrever:
dS=CVTdT+(∂p∂T)VdV=CVTdT+nRVdV=0
A equação integra-se facilmente, obtendo-se:
TVnRCv=const
Ou, eliminando a temperatura pela equação de estado, tem-se a forma mais familiar:
pV1+nRCV=pVγ=const (7)
Um método experimental para a determinação direta de γ foi apresentado por Eduard Rüchardt (FIGURA 1), em 1928.

O dispositivo (FIGURA 2) consiste num grande balão onde se introduz o gás a investigar. O balão liga ao exterior através de uma longa coluna cilíndrica de vidro (diâmetro interno 2R) colocada verticalmente. Uma esfera (ou um cilindro) maciça, de aço, de massa m e com um raio muito ligeiramente inferior ao do tubo, é introduzida neste.

Ignorando o atrito existe uma posição de equilíbrio para a esfera quando a força devida à pressão do gás no balão igualar a soma do peso da esfera com a força devida pela pressão atmosférica. Tomando o eixo z vertical e designando por z=0 a cota desta posição de equilíbrio, então deve ser:
πR2p(0)=mg+πR2pa
Que acontece quando a esfera é afastada desta posição? Se a esfera descer, comprime o gás dentro do balão, aumentando a pressão que ele exerce e, portanto, a esfera será empurrada para z=0; se a esfera subir, aumenta o volume ocupado pelo gás, o que diminui a pressão que ele exerce e, portanto, a esfera será puxada para z=0. Assim, se a esfera for largada verticalmente no interior do tubo, ficará a oscilar, podendo medir-se o período da oscilação, deduzindo-se a partir daí o valor de γ. Com efeito, as compressões e expansões do gás são tão rápidas que o gás, praticamente, não troca calor com o exterior, i.e., evolui adiabaticamente. Assim, designando por p(z) e V(z), respetivamente, a pressão exercida pelo gás e o volume que ocupa quando a esfera está à cota z, tem-se, pela eq. (7).
p(z)V(z)γ=p(0)V(0)γ ⇔ p(z)=p(0)[V(0)V(z)]γ
Ora, V(z)=V(0)+πR2z, pelo que:
p(z)=p(0)[1+πR2zV(0)]−γ≃p(0)[1−γπR2zV(0)]
onde se admitiu V(0)>>πR2z porque o balão é grande e as oscilações têm pequena amplitude. Assim, as forças que atuam na esfera têm resultante vertical
[p(z)−pa]πR2−mg=[p(z)−p(0)]πR2≅−p(0)γ(πR2)2V(0)z
tendo, a primeira igualdade sido obtida por eliminação do peso através da condição de equilíbrio. Assim, a lei fundamental da dinâmica dá, para o movimento da esfera:
md2zdt2=−p(0)γ(πR2)2V(0)z
É a equação de um oscilador harmónico que, portanto, apresenta a frequência (angular):
ω=√p(0)γ(πR2)2mV(0)
Com p(0) determinado pela posição de equilíbrio, V(0) praticamente igual ao volume do balão, obtemos assim γ medindo o período 2πω das oscilações da esfera.
Notas
1 A passagem de U para F é uma transformação de Legendre; o uso destes
“truques” tornam a Termodinâmica algo abstrata, mas simultaneamente, muito poderosa.
2 O resultado obtém-se diretamente da eq. (4): as derivadas cruzadas são iguais.
Recursos relacionados disponíveis na Casa das Ciências:
Criada em 5 de Junho de 2019
Revista em 5 de Junho de 2019
Aceite pelo editor em 21 de Junho de 2019