Camarinhas na alimentação e na saúde

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Referência : Barroca, M. J., Silva, A. M., (2021) Camarinhas na alimentação e na saúde, Rev. Ciência Elem., V9(1):011
Autor: Maria João Barroca e Aida Moreira da Silva
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2021.011]
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Resumo

As alterações globais estão a causar problemas e enormes desafios, relacionados com a alimentação, a saúde, as mudanças climáticas, a energia, entre outras áreas. Além disso, o aumento da população mundial, em simultâneo com a escassez de água potável e de terra cultivável, fazem com que a humanidade possa enfrentar uma enorme crise alimentar. A gestão dos recursos naturais disponíveis, e o desenvolvimento de tecnologias para melhorar a produtividade agrícola, requerem a contribuição de uma série de áreas do conhecimento, para garantir o acesso a alimentos, de uma forma sustentável, a todos os habitantes do planeta. O outro grande desafio é melhorar as condições que proporcionam bons padrões de saúde, acessível a todos, num mundo em crescente mudança. Consequentemente, o setor da saúde beneficiará com o desenvolvimento de novas tecnologias e de novos produtos. Nesse contexto, as plantas possuem uma longa história, e um importante papel não apenas como fonte alimentar, mas também em aplicações medicinais populares. Como exemplo, a Corema album (L.) D. Don (Ericaceae), vulgarmente conhecida como camarinha, é uma planta que desempenhou um papel importante na cultura ibérica popular das gerações anteriores. As características da espécie documentada em recursos históricos escritos, e nos vestígios arqueobotânicos da camarinha (pequena baga da planta), encontrados em diferentes registos arqueológicos, revelam que os pequenos frutos brancos da planta C. album têm vindo a ser explorados, pelo menos, desde o período Neolítico Inferior[1].

 

Na primeira metade do século XX, C. album era o arbusto mais visível nas dunas do Atlântico ibérico, apresentando uma folhagem perene verde escura (FIGURA 1). As descobertas arqueológicas na atual área de distribuição natural sugerem que, no passado, a área de distribuição era muito maior, tendo diminuído significativamente nas últimas décadas, sobretudo em áreas da costa ocidental da Península Ibérica. O declínio desta espécie deveu- -se aos impactos das mudanças climáticas, à crescente pressão de distúrbios de origem antropogénica, relacionada com a presença humana, o impacto do turismo e o desenvolvimento urbano nas áreas costeiras[2], [3].


FIGURA 1. Corema album numa duna da região centro de Portugal. (Créditos: Aida Moreira da Silva).

Além disso, os ecossistemas de dunas de areia têm sido afetados pelo aparecimento de plantas invasoras nitrófilas e pela diminuição da fauna especializada para a dispersão das sementes de C. album. A perda contínua de habitat e a competição de espécies invasoras, têm comprometido a regeneração e sobrevivência de várias populações de C. album, com a consequente diminuição da produção e respetiva comercialização dos pequenos frutos, nos mercados tradicionais.

C. album é um arbusto endémico da costa atlântica do sul da Europa, mas, devido à redução drástica do números de exemplares, foi classificado como uma espécie vulnerável e descrito na lista vermelha regional de plantas vasculares ameaçadas na Andaluzia e na Galiza, em Espanha[4], [5].

No passado, as bagas - camarinhas (em português) ou camariñas (em espanhol) - eram consumidas em fresco, em compotas ou licores, utilizadas da preparação de aperitivos e usadas na medicina popular como antipirético, antiescurbuto e vermicida[6], 6.

O comércio tradicional de bagas de camarinha era feito principalmente por populações costeiras com baixos recursos económicos, que colhiam as bagas manualmente e as vendiam na rua ou em mercados públicos de zonas costeiras de Portugal, da Galiza e da Andaluzia, entre outros alimentos ou recursos medicinais, tais como o tremoço, o amendoim, as azeitonas e as ervas aromáticas. No entanto, a melhoria do nível económico das populações, com a consequente alteração de hábitos e atividades, levaram a uma diminuição desta prática, embora a população local, que conhece este fruto silvestre, ainda faça a colheita nas dunas e nas falésias (FIGURA 2).

A consciencialização de que uma dieta baseada em alimentos vegetais tem benefícios para a saúde tem originado um crescente interesse dos investigadores sobre o conhecimento da composição química e dos mecanismos pelos quais os compostos bioativos das plantas/frutas promovem a saúde humana. Além disso, a relação observada entre a dieta e a saúde aumentou o interesse dos consumidores por dietas ricas em nutracêuticos. Assim, o estudo de pequenos frutos (bagas) tem-se concentrado na caracterização dos compostos bioativos e nos seus efeitos benéficos para a saúde, tendo em vista a sua utilização em alimentos funcionais. As pequenas bagas são consideradas potenciais fontes de uma grande variedade de compostos fenólicos como ácidos fenólicos, estilbenos, flavonóides e taninos, que possuem atividade antioxidante sendo, também, responsáveis pela cor e sabor muito característico[7].


FIGURA 2. Corema album numa falésia da Costa Vicentina. (Créditos: Aida Moreira da Silva).

De modo geral, a cor de pequenos frutos é muito diversa podendo exibir tons que variam desde o vermelho ao roxo, preto, rosa ou amarelo. No entanto, as bagas de camarinha têm uma cor branca, devido à presença de dois ácidos triterpénicos (ácidos ursólico e oleanólico), mas podem tornar-se translúcidas e desenvolver uma tonalidade rosada, em que as sementes podem ficar visíveis, num estado avançado de maturação (FIGURA 3).


FIGURA 3. Bagas de Corema album nos diversos estados de maturação e visualização das sementes nos estádios avançados da maturação. (Créditos: Aida Moreira da Silva).

As bagas de C. album, com diâmetro compreendido entre 5 e 10 mm e 0,31 a 0,66 g de peso, possuem, em regra, três sementes e um endocarpo espesso. Em geral, os pequenos frutos maduros têm um sabor fresco distinto, levemente ácido e açucarado e são ricos em água, fibra bruta e minerais[8].

Os principais compostos fenólicos presentes nas bagas de camarinha incluem ácidos fenólicos como o ácido benzóico, vanílico, cafeico e ferúlico, flavonoides incluindo a quercetina e rutina e as antocianinas. Ao contrário da generalidade dos pequenos frutos, as bagas brancas de camarinha têm um menor teor de antocianinas do que as bagas pretas ou vermelhas. No entanto, contêm um maior teor de ácido cafeico e derivados de miricetina que contribuem para o sabor ácido, a capacidade antioxidante e o efeito quimioprotetor da baga. De facto, a atividade antioxidante dos compostos bioativos presentes em bagas, ajudam a equilibrar a produção de radicais livres e a proteger o organismo do stress oxidativo, e, por conseguinte, promovem efeitos benéficos na saúde humana e ajudam a prevenir doenças crónicas degenerativas como o cancro, diabetes, inflamação, entre outras. As bagas de camarinha, revelaram, inclusivamente, um efeito promissor na redução da incidência de distúrbio neurodegenerativo de Parkinson[9].

Estas evidências sustentam o uso tradicional de C. album como um pequeno fruto com efeitos benéficos na saúde humana e sugerem que a incorporação das bagas na dieta contribui para a proteção contra doenças induzidas pelo stress oxidativo.

Apesar da perda de ecossistemas naturais e das mudanças socioeconómicas das populações costeiras, as bagas de C. album são uma fonte potencial de ingredientes alimentares e nutracêuticos. Para além disso, são um interessante nicho comercial de bagas para o mercado mundial, devido à sua novidade, à peculiar cor branca e aos compostos nutritivos e bioativos. As bagas brancas comestíveis são raras no mundo, apresentando um grande potencial sob o ponto de vista gastronómico, devido à busca da novidade por chefs e pelos consumidores.

Fora do âmbito científico, o conhecimento de Corema album contribui, ainda, para a preservação do património social e emocional que é particularmente marcante nas comunidades costeiras ibéricas.


Agradecimentos

Projeto: POCI-01-0145-FEDER-029305 - IDEAS4life – Novos IngreDiEntes Alimentares de Plantas MarítimaS. Co-financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), através do Portugal 2020 - Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI).

Referências

  1. LÓPEZ-DÓRIGA, I. L., The archaeobotany and ethnobotany of Portuguese or white crowberry (Corema album (L.) D. Don), Ethnobiology Letters, 9(2), 19–32. 2018.
  2. BLANCA, G. et al., Libro Rojo de la Flora Silvestre Amenazada de Andalucía, Consejería de Medio Ambiente. 2000.
  3. GIL-LÓPEZ, M. J., Etnobotánica de la camarina (Corema album, Empetraceae) en Cádiz, Acta Botanica Malacitana, 36, 137–144. 2011.
  4. BLANCA, G. et al., Libro Rojo de la Flora Silvestre Amenazada de Andalucía, Consejería de Medio Ambiente. 2000.
  5. GIL-LÓPEZ, M. J., Etnobotánica de la camarina (Corema album, Empetraceae) en Cádiz, Acta Botanica Malacitana, 36, 137–144. 2011.
  6. LEÓN-GONZÁLEZ, A. J. et al. Chemo-protective activity and characterization of phenolic extracts from Corema album, Food Research International, 49(2), 728–738. 2012.
  7. DELGADO-VARGAS, F. et al., Natural pigments: Carotenoids, anthocyanins, and betalains–characteristics, biosynthesis, processing, and stability, Critical Reviews in Food Science and Nutrition, 40(3), 173–289. 2000.
  8. BARROCA, M. J., & MOREIRA DA SILVA, A., From folklore to the nutraceutical world: the Corema album potential, In Galanakis C (Ed.), Gastronomy and Food Science, (1st edition, pp. 119–134). Elsevier. 2020.
  9. MACEDO, D. et al., (Poly)phenols protect from ?-synuclein toxicity by reducing oxidative stress and promoting autophagy, Human Molecular Genetics, 24(6), 1717–1732. 2015.


Criada em 20 de Janeiro de 2021
Revista em 20 de Janeiro de 2021
Aceite pelo editor em 15 de Março de 2021