As primeiras flores
Referência : Mendes, M.M., (2020) As primeiras flores, Rev. Ciência Elem., V8(1):008
Autor: Mário Miguel Mendes
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [http://doi.org/10.24927/rce2020.008]
Em Portugal, a flora do Cretácico (145-65 Ma) é extremamente rica e compreende formas vegetais com grande interesse paleobotânico. A boa representatividade dos andares do Cretácico português, em particular na Bacia Lusitaniana, permite acompanhar a evolução da vegetação desde o Cretácico Inferior, onde predominavam os fetos e as gimnospérmicas (plantas com sementes nuas), até ao Cretácico Superior onde passaram a dominar as angiospérmicas (plantas com flor) que rapidamente se expandiram e colonizaram praticamente todos os ecossistemas terrestres, representando, atualmente, cerca de 85% das espécies vegetais que constituem a flora moderna.
Ao longo de décadas, o aparecimento das angiospérmicas tem sido descrito como um súbito evento evolutivo que Charles Darwin designou como abominable mystery.
Em termos evolutivos, os argumentos estendem-se em muitas direções e um aspeto de primacial importância é compreender qual é a posição filogenética das angiospérmicas relativamente às outras plantas com semente. Mais ainda, é possível que o aparecimento das primeiras flores não tenha sido algo tão repentino quanto se julga. Esta problemática nunca poderia ser esclarecida somente através do estudo de plantas da flora moderna. As plantas “não angiospérmicas” presentes nos ecossistemas atuais representam apenas uma pequena fração daquilo que existiu no passado, pelo que, há necessariamente que recorrer ao registo fóssil para estabelecer o elo de ligação.
Os estudos de mesofloras do Cretácico Inferior (entre 145-100 Ma, aproximadamente), provenientes de depósitos fossilíferos localizados na Bacia Lusitaniana, têm proporcionado a descoberta de restos de vegetais fósseis que correspondem a sementes e a órgãos produtores de pólenes atribuíveis a plantas extintas pertencentes a grupo de gimnospérmicas que apresenta semelhanças significativas com as Gnetales[1], [2], [3], [4]. A este respeito impende mencionar que, análises filogenéticas previamente realizadas sugerem que as angiospérmicas se encontram estreitamente relacionadas com as Gnetales e as Bennettitales. Assim sendo, o estudo das sementes e dos órgãos produtores de pólenes, atribuíveis a estas plantas reveste-se de elevada importância, dado que poderá contribuir de forma significativa para o esclarecimento e compreensão de vários aspetos relacionados com a evolução das estruturas reprodutoras das angiospérmicas (e.g., estames e carpelos). Além disso, o estudo destas estruturas reprodutoras tem interesse paleoecológico de considerável significado, dado que estas plantas coexistiram com as primeiras angiospérmicas, ocupando ecossistemas com características ambientais muito semelhantes.
Estas sementes e órgãos produtores de pólenes partilham inúmeras semelhanças com as Bennettitales, Erdtmanithecales e Gnetales e constituem um grupo monofilético, atualmente designado por grupo BEG[5].
As sementes do grupo BEG apresentam pequena dimensão e são basicamente constituídas por três tecidos distintos. O tecido mais interno corresponde ao nucelo, preservado sob a forma de delicada película. O nucelo encontra-se envolvido por fino tecido de natureza membranosa, o tegumento interno. A envolver externamente o tegumento interno encontra-se uma camada resistente de tecido esclerenquimatoso que constitui o envelope da semente[6].
Na mesoflora de Vale Painho (Juncal; FIGURA 1), cuja idade provável corresponde ao Berriasiano, foram recolhidas e formalmente descritas sementes fósseis pertencentes ao grupo das extintas Erdtmanithecales e atribuíveis à espécie Erdtmanispermum juncalense Mendes, Friis & Pais[7]. Estas sementes têm forma ovoide a elipsoide, a base é arredondada, apresentam distinto ápice micropilar pontiagudo e possuem envelope externo constituído por três valvas (FIGURAS 2A e 2B).
Incluem-se ainda na ordem Erdtmanithecales diversas estruturas masculinas produtoras de pólenes do tipo Eucommiidites. Nas floras portuguesas do Cretácico Inferior da Bacia Lusitaniana, foram descritas Eucommiitheca hirsuta Friis & Pedersen, recolhida na mesoflora de Vila Verde, com idade atribuível ao intervalo Aptiano superior-Albiano inferior e Erdtmanitheca portucalensis Mendes, Pais, Pedersen & Friis, proveniente da rica mesoflora de Vale Farelo (Vale de Água), cuja idade, também, corresponde ao Aptiano superior-Albiano inferior[8] (FIGURAS 3A e 3B). Nos Estados Unidos da América do Norte, já havia sido anteriormente descrita, uma estrutura masculina produtora de pólenes do tipo Eucommiidites, muito semelhante a Erdtmanitheca portucalensis (FIGURAS 3C, 3D e 3E).
A), B) – Sementes de Erdtmanispermum juncalense com forma de gota a ovoide, invólucro tripartido e micrópilo pontiagudo distinto. C), D) – Sementes de Raunsgaardispermum lusitanicum
com forma ovoide evidenciando a natureza bipartida do invólucro externo. Na semente das imagens D) e E) observam-se pólenes in situ no micrópilo (seta). F) – Pólen monocolpado de tipo
Raunsgaardispermum exibindo típica forma elíptica. Escala: A), D) – 500 µm; B), – 250 µm; C) – 1 mm; E) – 50 µm; F) – 10 µm.
Trata-se de Erdtmanitheca texensis Pedersen, Crane & Friis da mesoflora de Arthurs Bluff, no Texas, com idade Cenomaniano inferior[9]. É de salientar que, apesar da boa representação nas mesofloras do Cretácico da Europa e da América do Norte, estes órgãos masculinos, produtores de pólenes do tipo Eucommiidites, nunca foram encontrados em associação com sementes de Erdtmanispermum.
Na mesoflora de Vale Painho, além das sementes de Erdtmanispermum juncalense, foram recolhidas outras sementes de gimnospérmicas que apresentam plano de organização estrutural muito semelhante ao das sementes do grupo BEG. Estas sementes portuguesas foram formalmente descritas e atribuídas ao novo género e espécie Raunsgaardispermum lusitanicum Mendes, Pais & Friis[10] (FIGURA 2C e 2D). Têm forma ovoide a elíptica e, também, apresentam região micropilar pontiaguda distinta. Estas sementes distinguem-se de Erdtmanispermum juncalense pelo facto de possuírem um envelope constituído por duas valvas, ornado por finas estrias longitudinais distintamente bifurcadas (FIGURA 2C). As formas atribuídas a Raungaardispermum lusitanicum aproximam-se grandemente das sementes de Ephedra (Gnetales), devido à presença de papilas na face interna do envelope da semente que envolve o tubo micropilar. Porém, nestas sementes, não se observaram pólenes poliplicados (com sulcos paralelos), típicos de efedróides, no micrópilo da semente. Os grãos de pólen são monocolpados (com uma abertura germinativa) e assemelham-se bastante aos das Bennettitales[11], nomeadamente, Cycadeoidea dacotensis (MacBride) Ward e Leguminanthus siliquosus (Leuthardt) Kräusel & Schaarschmidt (FIGURAS 2E e 2F).
Na mesoflora de Catefica, com idade provável correspondente ao Aptiano superior-Albiano inferior, foram identificadas diversas sementes, em excelente estado de preservação, atribuíveis a Buarcospermum tetragonium, bem como, aos novos táxones Lobospermum rugosum Friis, Pedersen & Crane, Lobospermum glabrum Friis, Pedersen & Crane[12] e Lignierispermum maroneae Friis, Pedersen & Crane[13]. Formas muito semelhantes às portuguesas foram recolhidas na mesoflora de Puddledock, nos Estados Unidos da América do Norte, com idade atribuída ao Albiano inferior ou médio. Na mesoflora de Puddledock identificaram-se sementes de Lignierispermum maroneae e Lobospermum rugosum e foram descritos os novos táxones Lobospermum stampanonii Friis, Pedersen & Crane[14].
Até ao momento, não foram identificadas sementes atribuíveis às extintas Bennettitales, nas mesofloras portuguesas do Cretácico Inferior. No entanto, noutras floras europeias, nomeadamente, na flora de Vaches-Noires, de idade Albiano, foram recolhidas sementes mineralizadas de Bennettitales, atribuíveis a Cycadeoidea morierei (Saporta & Marion) Seward.
A típica estrutura evidenciada por todas estas sementes de gimnospérmicas referenciadas e, bem assim, as fortes analogias existentes entre as de Buarcospermum, Ephedra, Erdtmanispermum, Lignierispermum, Lobospermum, Raunsgaardispermum e de algumas Bennettitales, sugerem, claramente, a existência de um complexo de plantas extintas, estreitamente relacionadas em termos filogenéticos. Estas sementes de Bennettitales, Erdtmanithecales e Gnetales, bem como outras afins, amplamente representadas nos ecossistemas do Cretácico Inferior e contemporâneas das primeiras angiospérmicas, parecem constituir um grupo monofilético, atualmente designado por grupo BEG.
[editar] Referências
- ↑ FRIIS, E. Early Cretaceous mesofossils from Portugal and eastern North America related to the Bennettitales- -Erdtmanithecales-Gnetales group, American Journal of Botany. 96, 252-283. 2009.
- ↑ MENDES, M. et al. Erdtmanispermum juncalense sp. nov., a new species of the extinct order Erdtmanithecales from the Early Cretaceous (probably Berriasian) of Portugal, Review of Palaeobotany and Palynology. 149, 50–56. 2008.
- ↑ MENDES, M. et al. Raunsgaardispermum lusitanicum gen. et sp. nov., a new seed with in situ pollen from the Early Cretaceous (probably Berriasian) of Portugal: Further support for the Bennettitales-Erdtmanithecales-Gnetales link, Grana 47, 211–219. 2008.
- ↑ MENDES, M. et al. Erdtmanitheca portucalensis, a new pollen organ from the Early Cretaceous (Aptian–Albian) of Portugal with Eucommiidites-type pollen, Grana 49, 26-36. 2010.
- ↑ FRIIS, E. Early Cretaceous mesofossils from Portugal and eastern North America related to the Bennettitales- -Erdtmanithecales-Gnetales group, American Journal of Botany. 96, 252-283. 2009.
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- ↑ PEDERSEN, K. et al Pollen organs and seeds with Eucommiidites pollen, Grana 28, 279-294. 1989.
- ↑ MENDES, M. et al. Raunsgaardispermum lusitanicum gen. et sp. nov., a new seed with in situ pollen from the Early Cretaceous (probably Berriasian) of Portugal: Further support for the Bennettitales-Erdtmanithecales-Gnetales link, Grana 47, 211–219. 2008.
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Revista em 1 de Janeiro de 2020
Aceite pelo editor em 28 de Fevereiro de 2020