A problemática das cianotoxinas nos ecossistemas aquáticos
Referência : Pinto, I., Azevedo, L., Antunes, S. C., (2025) A problemática das cianotoxinas nos ecossistemas aquáticos, Rev. Ciência Elem., V13(3):030
Autores: Ivo Pinto, Luísa Azevedo e Sara C. Antunes
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2025.030]
[editar] Resumo
As cianobactérias são bactérias gram-negativas capazes de realizar fotossíntese oxigénica, de coloração verde-azulada resultante da combinação dos pigmentos ficocianina e clorofila, e apresentam ampla diversidade morfológica e metabólica. Em águas eutróficas, frequentemente formam florações (blooms), que alteram os ecossistemas podendo produzir cianotoxinas, compostos tóxicos como neurotoxinas (saxitoxina, anatoxina-a), hepatotoxinas (microcistina, nodularina) e dermatoxinas (lipopolissacarídeos). Estas toxinas afetam os organismos aquáticos, como zooplâncton e peixes, induzindo alterações na reprodução, crescimento e comportamento. Reconhecida a toxicidade e os impactes ecológicos destes blooms cianobacterianos, a sua monitorização é de extrema importância para a preservação dos ecossistemas, para a segurança ambiental e para o bem-estar humano e de outras espécies.
As Cianobactérias.
As cianobactérias são organismos procariontes microscópicos, reconhecidos pela coloração verde-azulada, atribuída à presença da clorofila (verde) e do pigmento ficocianina (azul). Embora historicamente denominadas “algas verde-azuladas”, na verdade, trata-se de bactérias gram-negativas com capacidade de realizar fotossíntese oxigénica[1]. Estes organismos colonizam uma ampla gama de ambientes, desde ecossistemas aquáticos, terrestres e subaéreos, além de puderem ocorrer também em condições extremas, como regiões polares, desertos e fontes termais[2]. As cianobactérias exibem notável diversidade morfológica, fisiológica e metabólica, destacando-se, entre os géneros de água doce mais comuns: Microcystis, Cylindrospermopsis, Planktothrix, Synechococcus, Anabaena, Anabaenopsis, Lyngbya, Aphanizomenon, Nostoc e Synechocystis[3] (FIGURA 1).
As cianobactérias podem ocorrer de forma isolada ou organizadas em colónias/biofilmes, onde a densidade populacional está relacionada com o estado trófico da massa de água. O estado trófico de um ecossistema aquático reflete as condições ambientais favoráveis ao desenvolvimento de microalgas, e de cianobactérias. Processos de eutrofização que se caracterizam por apresentar altas concentrações de nutrientes, elevados valores de temperatura, pH e condutividade promovem o crescimento elevado de fitoplâncton, nomeadamente das cianobactérias. Esse fenómeno, conhecido como florações ou blooms de cianobactérias, pode atingir densidades populacionais bastante expressivas, inclusive formar uma película na superfície da água (scum), induzindo alterações significativas nas condições ecológicas dos ecossistemas[4] (FIGURA 2).
Algumas cianobactérias são capazes de produzir compostos que alteram o sabor e o odor da água, comprometendo o uso deste recurso hídrico[6]. Além disso, muitas dessas bactérias produzem uma ampla variedade de metabolitos tóxicos, conhecidos como cianotoxinas, que exercem impactes significativos sobre a biota aquática. Os efeitos incluem a contaminação da água potável, prejuízos para a irrigação, podem ainda levar a restrições de atividades recreativas e em casos graves, a morte de espécies como peixes e invertebrados aquáticos[7].
O que são Cianotoxinas?
Regra geral, as cianotoxinas são classificadas como neurotoxinas, hepatotoxinas e dermatoxinas, de acordo com o modo de ação nos organismos (TABELA 1). No ecossistema aquático, com exceção da cilindrospermopsina, as cianotoxinas encontram-se predominantemente no interior das células das cianobactérias, mas podem ser libertadas para o meio em altas concentrações, especialmente durante a morte celular[8].
As neurotoxinas formam um amplo grupo de alcaloides, divididos em subgrupos como saxitoxina, anatoxina-a, homoanatoxina-a e anatoxina-a(S). Essas toxinas são produzidas por diferentes espécies de dinoflagelados e por várias cianobactérias (TABELA 1). Embora os mecanismos de ação sejam diferentes, entre as neurotoxinas, todas compartilham a capacidade de interromper a transmissão normal de estímulos nervosos aos músculos, resultando em paralisia muscular e, potencialmente, morte por falência respiratória, num intervalo de tempo que pode variar de poucos minutos a algumas horas[9].
As hepatotoxinas, por sua vez, são compostos cíclicos que incluem peptídeos com cinco (nodularina) ou sete aminoácidos (microcistinas) ou um alcaloide guanidínico cíclico (cilindrospermopsina). Assim como as neurotoxinas, essas substâncias são produzidas por várias espécies de cianobactérias (TABELA 1), e as microcistinas destacam-se como as cianotoxinas mais frequentemente detetadas em ecossistemas de água doce em Portugal[10], [11]. Como o nome sugere, as hepatotoxinas têm o fígado como principal órgão-alvo, causando a destruição da sua estrutura interna, o que pode levar a hemorragia intra-hepática, choque hipovolémico e morte. Além disso, estas toxinas podem afetar o funcionamento de outros órgãos, como rins, pulmões, timo e coração[12].
As dermatotoxinas produzidas por cianobactérias incluem compostos com diferentes mecanismos de ação. A principal toxina com efeitos dermatológicos é a lingbiatoxina, um alcaloide produzido principalmente por espécies do género Lyngbya, que pode causar dermatite de contato intensa, inflamação e lesões cutâneas[13]. Além disso, lipopolissacarídeos (LPS) presentes na membrana externa de muitas cianobactérias, embora tenham baixa toxicidade, podem atuar como agentes irritantes, provocando reações alérgicas leves na pele e mucosas após contato com água contaminada. Em geral, os efeitos dermatológicos cessam com a interrupção da exposição[14].
Efeitos das cianotoxinas na comunidade aquática.
A maioria dos estudos sobre os efeitos das cianotoxinas em organismos aquáticos concentra- se na observação dos impactes da exposição a toxinas isoladas em ensaios laboratoriais. Contudo, no ambiente natural, os organismos estão expostos a misturas complexas de cianotoxinas14 sejam elas por exposição direta ou indireta (FIGURA 3).
Estudos científicos têm demonstrado que o aumento de temperatura e da concentração de nutrientes na água impulsiona alterações na composição fitoplânctónica. Estes fatores favorecem o desenvolvimento de cianobactérias, em particular, os géneros que frequentemente formam florescências e que são conhecidos como produtores de toxinas (por exemplo, Microcystis e Aphanizomenon: FIGURA 1 A) e 1 H))[15], [16]. As cianobactérias apresentam temperaturas ótimas de crescimento superiores a 20 °C e competem com outros grupos de fitoplâncton, como Bacillariophyta, Cryptophyta e Dinoflagellata, que possuem temperaturas ótimas de crescimento mais baixas[17]. Para além disso, algumas cianobactérias conseguem ainda utilizar o nitrogénio atmosférico como fonte extra de nutrientes, o que lhes confere acesso a fontes de nitrogénio indisponíveis para outras microalgas e que propicia ainda mais o seu desenvolvimento[18]. Contudo, os mecanismos de interação entre cianobactérias e outras microalgas, bem como o papel de ambos os grupos na dinâmica do fitoplâncton ao longo do ano, ainda são pouco compreendidos[19].
Os organismos zooplanctónicos são considerados os principais alvos das cianotoxinas, uma vez que se acredita que estes metabolitos secundários sejam produzidos como uma estratégia de defesa contra a herbivoria[20]. Estudos de campo e de laboratório indicam que as microcistinas podem provocar uma ampla gama de efeitos no zooplâncton de água doce, incluindo alterações bioquímicas, distúrbios no crescimento e na fecundidade, redução no número de descendentes e deformidades nos mesmos, para além do aumento na mortalidade[21], [22]. No entanto, os organismos zooplanctónicos, desenvolveram mecanismos para tolerar a exposição às toxinas de cianobactérias. Note-se que algumas espécies de copépodes conseguem reduzir a exposição a microcistinas evitando o consumo de Microcystis, e selecionando organismos não produtores de cianotoxinas ou até mesmo espécies alternativas[23].
As cianotoxinas também parecem exercer efeitos adversos em peixes, observando-se toxicidade direta/contato até impactes fisiológicos, comportamentais e reprodutivos[24], [25]. A toxicidade direta pode comprometer órgãos vitais, como fígado, rins e trato intestinal, além de afetar o sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade dos peixes a infeções secundárias, alterações do sistema nervoso, causando paralisia e até morte[26], [27]. As cianotoxinas induzem ainda efeitos ao nível dos ciclos hormonais, reduzindo a qualidade do esperma e dos ovos, e assim, prejudicando o sucesso reprodutivo de peixes</ref>, [28], [29]. Em termos comportamentais têm sido também observadas alterações comportamentais, como redução da atividade natatória, dificuldades na localização de alimentos e alteração de respostas a predadores[30].
Desafios para a Saúde, Sustentabilidade e Gestão dos Ecossistemas.
As cianotoxinas têm sido responsáveis por numerosos casos de envenenamento, destacando as graves consequências para a saúde humana associadas a esses compostos tóxicos (por exemplo, microcistina). Isso evidencia a necessidade urgente de aprofundar a investigação sobre a complexidade da toxicidade dos compostos secundários das cianobactérias, suas repercussões ecológicas e interações multifacetadas com a vida aquática e os ecossistemas.
No que diz respeito a recomendações sobre limites máximos, apenas a Microcistina-LR apresenta valor de referência (1 μg/L), sendo que este valor já se encontra presente na legislação (para "águas de consumo") de vários países incluindo Portugal[31]. No entanto, em contexto ambiental ainda não existem valores de referência definidos para nenhuma toxina. Assim, é fundamental estabelecer limites orientadores de concentrações máximas admissíveis nos ecossistemas aquáticos, bem como implementar uma rigorosa monitorização dessas substâncias nos recursos hídricos, como parte integrante de avaliação e gestão de riscos ambientais.
A investigação e aumento do conhecimento científico sobre este impacte ambiental é crucial para promover a sustentabilidade e a segurança dos ecossistemas, em alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente no que tange ao consumo e produção responsáveis e à preservação da vida aquática. Garantir a saúde e bem-estar destes ecossistemas contribui não só para uma melhor saúde dos organismos vivos diretamente afetados por esta problemática, mas também a saúde do ambiente e saúde humana, em alinhamento com o conceito integrativo “One Health – Uma Saúde”.
Agradecimentos
Esta pesquisa foi financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (através do COMPETE2030 e do PT2030) através do projecto de investigação 2Qua (COMPETE2030-FEDER-00691700), e pelo Programa Estratégico do CIIMAR (UIDB/04423/2020 e UIDP/04423/2020), UMIB (UIDB/00215/2020 e UIDP/00215/2020) e ITR (LA/P/0064/2020). Ivo Pinto é apoiado por bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.l0194.BD) e Luísa Azevedo é apoiada pelo programa de Estímulo ao Emprego Científico.
[editar] Referências
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Criada em 8 de Abril de 2025
Revista em 16 de Junho de 2025
Aceite pelo editor em 15 de Outubro de 2025

