Do espaço ao solo
Referência : Neves, V. H., Pace, G., Antunes, S., Delegido, J., (2023) Do espaço ao solo, Rev. Ciência Elem., V11(4):044
Autores: Vítor Hugo Neves, Giorgio Pace, Sara Antunes e Jesus Delegido
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2023.044]
Resumo
Atualmente estamos perante um desafio de mudanças climáticas significativas e preocupantes. Essas mudanças têm conduzido o planeta a uma série de efeitos ambientais, onde cidades costeiras sofrem com enchentes e inundações, enquanto outras regiões enfrentam secas severas e prolongadas. É assim importante tomar decisões e aplicar medidas para combater os efeitos que as atividades humanas têm promovido e agravado. Neste cenário, a informação e conhecimento científico tornam-se as ferramentas mais valiosas para que políticos, governos e cientistas possam agir o mais rapidamente e corretamente possível. Nesse contexto, a deteção remota (DR) via satélite ganha estatuto de instrumento essencial, devido à capacidade para monitorizar as mudanças climáticas e os seus efeitos em todo o mundo numa escala real. Por meio da captura de imagens de satélite, é possível obter informações precisas e quase em tempo real sobre os mais diversos parâmetros ambientais.
Satélites e a observação da terra.
A grande parte dos satélites que orbitam a Terra são usados para três finalidades: comunicação, navegação e observação da Terra. Como o nome indica, os satélites de comunicação são usados para transmitir informações de um ponto do planeta para outro, com a vantagem de conseguirem aceder a zonas mais remotas. Por sua vez, os satélites de navegação compõem sistemas, como o famoso Global Positioning System (GPS), que nos permitem saber sempre onde estamos localizados na Terra. E por fim, os satélites de observação da Terra que, atualmente, são ferramentas rotineiras e essenciais para apoiar a proteção do ambiente a nível global[1].
Por definição, Deteção Remota (DR) consiste na identificação de caraterísticas da superfície terrestre e na estimativa das suas propriedades geo-biofísicas, utilizando a radiação eletromagnética como meio de interação[2]. Por outras palavras, permite recolher dados à distância, da superfície da Terra, da atmosfera, da hidrosfera e de outros elementos posicionados na Terra. Para tal, são usados instrumentos instalados a bordo de satélites, aviões ou outros veículos (FIGURA 1) que usam sensores para captar a luz refletida pela Terra e os seus elementos. Posteriormente, esses dados são processados e analisados sob a forma de imagens.
O uso de satélites para a observação da Terra apresenta inúmeras vantagens comparativamente a outros métodos de DR, por exemplo o drone, mas sobretudo comparando com métodos convencionais de recolha de amostras e monitorização. Dentre as vantagens, destacam-se[3]:
- Cobertura global e sinóptica: capacidade de observar qualquer zona do nosso planeta, através de uma visão geral e sumarizada.
- Possibilidade de observações repetidas: capacidade de observar a mesma área repetidamente, permitindo avaliar mudanças temporais.
- Possibilidade de observações multi-escala: capacidade de observar a diferentes escalas (desde local a global).
- Observação na zona não-visível do espectro: capacidade de observar e registar informação na zona do infravermelho e/ou ultravioleta.
- Transmissão imediata dos dados adquiridos: os dados recolhidos podem ser transmitidos imediatamente para posterior análise, permitindo uma resposta mais rápida a eventos ou mudanças observadas.
Programas e missões espaciais.
Os satélites de observação da Terra têm sido lançados por várias nações e organizações ao longo dos anos, com objetivos específicos de ajudar a conhecer a superfície da Terra. Desde o lançamento do primeiro satélite, o Sputnik 1, em 1957, as missões espaciais tornaram-se uma componente essencial da exploração e observação do nosso planeta. No ano de 1972, iniciaram-se as missões Landsat, pertencentes ao programa com o mesmo nome, gerido pela National Aeronautics and Space Administration (NASA) e pela United States Geological Survey (USGS), agências dos Estados Unidos da América. O primeiro satélite, Landsat-1, inicialmente denominado Earth Resources Technology Satellite (ERTS-1), tinha como função principal observar a Terra. O Landsat-1 tornou-se pioneiro no uso de plataformas espaciais para a aquisição sistemática de imagens da superfície terrestre[4]. Esta missão é considerada um marco científico, pois revelou a importância de possuir informações de imagens para monitorizar processos biosféricos, e demonstrou o seu valor na gestão ambiental ao acompanhar alterações sazonais e inter-anuais das condições de uso do solo, a nível global[5]. Estas ferramentas também permitem realizar análises de tendências em larga escala, ajudando a compreender efeitos de alterações climáticas e de atividades antrópicas na biosfera, uma vez que as primeiras observações de Landsat datam de 1972. O avanço tecnológico é visível atualmente através do Landsat-9 (lançado a 27 de setembro de 2021) que possui uma resolução espacial de 30 metros, o que significa que pode fornecer imagens detalhadas da superfície terrestre, como estradas, rios, campos agrícolas e florestas.
Paralelamente ao Landsat, na Europa existe a European Organisation for the Exploitation of Meteorological Satellites (EUMETSAT), organização intergovernamental dedicada à operação de satélites meteorológicos que monitorizam o clima e o ambiente, em toda a Europa. As missões mais conhecidas da EUMETSAT pertencem à série Meteosat, com o primeiro satélite (Meteosat- 1) lançado em 1977. Os satélites Meteosat captam imagens de alta resolução da Terra a cada 15 minutos, permitindo aos meteorologistas monitorizar tempestades, furacões, ondas de calor e outros fenómenos meteorológicos extremos, em toda a Europa e África[6]. Copernicus é um outro programa da European Space Agency (ESA) que inclui diversas missões, como as Sentinel, que utilizam tecnologias como radares e imagens multiespectrais para monitorizar a superfície terrestre, oceano e atmosfera. O objetivo principal deste programa é substituir missões de observação da Terra mais antigas e assegurar a continuidade dos dados de satélite, abrangendo as áreas de estudo da Atmosfera, Oceano e Terra[7]. O Sentinel-1 é um radar que monitoriza a terra e oceano durante 24 horas por dia[8]. Já o Sentinel-2 é um dos destaques atuais com uma resolução espacial de 10 metros, sendo utilizado para monitorizar a vegetação, o solo e áreas costeiras, bem como para avaliar a qualidade da água em águas interiores[9]. Os diversos satélites Sentinel- 3 centram-se na observação marinha, com ênfase no estudo da topografia da superfície da água, cor e temperatura do oceano6. As missões Sentinel-4, -5 e -5P monitorizam a qualidade do ar, e a missão Sentinel-6 está focada na medição do nível médio das águas do mar[10].
Aplicações e casos de estudo.
GEO— Group on Earth Observations é uma parceria global de mais de 100 governos e organizações que procuram um futuro onde as decisões, em benefício da humanidade, sejam tomadas com base em observações terrestres coordenadas e sustentadas[11]. O GEO identificou várias áreas que beneficiam da existência de um sistema coordenado de observação do planeta, das quais se pode destacar: a melhor compreensão dos fatores ambientais que afetam a saúde e bem-estar humano; a avaliação da eficácia na gestão dos recursos naturais; a compreensão, avaliação, revisão, mitigação e adaptação à variabilidade climática; e a melhoria da informação meteorológica[12].
Uma das áreas em que a análise por DR via satélite tem sido bastante utilizada, para apoio na gestão, é a agricultura. Um exemplo que pode ser observado regista-se na zona do baixo Mondego, onde ferramentas de DR foram utilizadas para avaliar as condições de cultivo do arroz[13]. Tradicionalmente, a irrigação do arroz é efetuada por inundações contínuas, uma prática que contribui para uma baixa eficiência de uso de água. No contexto climático atual onde se regista um aumento de pressão sobre os recursos hídricos, torna-se fundamental explorar métodos alternativos de irrigação. Para esse efeito é necessário aumentar o conhecimento sobre a dinâmica da água no cultivo de arroz. Neste caso de estudo, imagens de satélite foram utilizadas para calcular e comparar índices de vegetação (NDVI— Índice de Diferença Normalizada da Vegetação) e de água (NDWI— Índice de Diferença Normalizada da Água) (FIGURA 2). O NDVI é um índice espectral que está diretamente relacionado com a capacidade fotossintética das plantas onde valores moderados representam arbustos e prados, valores elevados correspondem a vegetação arbórea densa com elevado teor de clorofila[14]. Valores negativos deste índice geralmente correspondem a nuvens, água e neve, os valores muito próximos do zero representam maiores áreas de rochas ou solo nu. No exemplo representado na FIGURA 2A), os terrenos retratados com verde mais escuro (por exemplo, 1-3 e 6-9) representam vegetação com maior valor de clorofila do que os terrenos mais claros (por exemplo, 4 e 10). O NDWI é um índice espectral que foi inicialmente elaborado para delinear caraterísticas de massas de água através da avaliação da turbidez, mitigando a refletância do solo e da cobertura vegetal[15]. Além disso, este índice apresenta uma forte relação com o conteúdo de água da planta, o que permite estimar o stress hídrico de uma plantação. O índice varia entre -1 e 1 onde valores negativos representam zonas onde não há água, e valores positivos representam zonas de água. Aplicando o índice à vegetação e analisando o exemplo da FIGURA 2B), quanto mais intenso for o azul maior o conteúdo de água dessa vegetação e menor o stress hídrico que enfrenta. Em geral, utilizar imagens de satélite para calcular estes índices é uma metodologia aplicada regularmente e a larga escala, que permite aos agricultores perceberem qual o estado de saúde da vegetação, estado de germinação, stress hídrico das plantas, entre outras aplicações[16].
O aumento da pressão sobre os recursos hídricos é elevado e a seca é um fenómeno que resulta da variabilidade regional no ciclo global da água, associado aos padrões de circulação atmosférica[18]. Tradicionalmente, a monitorização de períodos de seca é feita através de observações pontuais a partir da terra, e abordada numa perspetiva meteorológica e agrícola[19]. Contudo, esta metodologia enfrenta dificuldades relacionadas com a insuficiência de instrumentos— como estações climáticas— que providenciem observações consistentes a longo prazo[20]. As ferramentas de DR via satélite permitem estudar variáveis associadas à seca como a precipitação, humidade do solo e evapotranspiração, e também quantificar os impactes da seca à escala de ecossistemas[21], [22]. Assim, um dos índices de avaliação de seca mais utilizado é o Palmer Drought Severity Index (PDSI) que se baseia no conceito do balanço da água tendo em conta dados da precipitação, temperatura do ar e água disponível no solo provenientes de ferramentas de DR. Este índice permite identificar a ocorrência de períodos de seca classificando-os em termos de intensidade (fraca, moderada, severa e extrema)[23]. A FIGURA 3 representa os valores desse índice em agosto de 2022, em Portugal, onde se pode observar que foi um período de seca severa em todo o país.
Para além da utilidade na gestão da terra, a aplicação de satélites de observação da Terra é igualmente vantajosa na gestão da água. Um outro exemplo em que as ferramentas de DR via satélite têm sido aplicadas é na monitorização do armazenamento de água e suas variações, uma vez que é importante compreender os processos hidrológicos locais[25]. Regra geral, medições de descargas fluviais são feitas através de medidores de fluxo instalados ao longo de corpos de água. Esta metodologia apresenta limitações como o reduzido número de medidores, a instalação destes é feita quase exclusivamente em cursos de água maiores e a dificuldade de obtenção de dados de descarga em rios transfronteiriços[26], [27]. A DR via satélite é capaz de contornar esses problemas e estimar descargas fluviais e o armazenamento de água[28], [29], [30], particularmente em albufeiras onde estas massas de água são responsáveis por controlar variações sazonais e anuais do fluxo de rios (FIGURA 4)[31], [32]. Estas ferramentas são úteis para breves análises visuais de imagens (ao comparar as imagens representadas na FIGURA 4 é possível constatar uma diminuição da área ocupada por água na albufeira do Rabagão), mas ganham ainda mais destaque em estudos onde a escala temporal e espacial é mais complexa e onde as variações não são tão evidentes. Através de DR via satélite é ainda possível estimar de forma precisa parâmetros como área de superfície da água (através de métodos de classificação que atribuem classes como água, solo e vegetação a cada pixel), nível da superfície da água (através de medições diretas por altímetros a bordo de satélites) e volume de água (através de uma combinação dos métodos anteriormente descritos)[33], [34], [35].
Além de serem úteis na identificação e registo de eventos hidroclimáticos extremos como as secas, os satélites de observação da Terra também permitem analisar os efeitos de desastres naturais e/ou antrópicos. A FIGURA 5 apresenta os efeitos na vegetação após o incêndio de Pedrogão Grande, em junho de 2017. Em situações de grandes incêndios, as imagens de satélite e os produtos derivados dessas imagens permitem analisar as áreas perturbadas e a intensidade de perturbação[36], [37]. Estas ferramentas podem ser utilizadas para comparar as condições antes e depois dos eventos de incêndios florestais bem como detetar mudanças nas respostas espectrais após o fogo, considerando a resposta da vegetação analisando o índice NDVI[38], [39]. Através de imagens de satélite é possível ainda determinar índices como o Normalized Burn Ratio (NBR), que usa uma escala de classificação entre valores de -1 e 1 para representar a magnitude de mudanças provocadas por incêndios— valores negativos representam área queimada, e valores positivos representam vegetação saudável (quanto mais próximo de 1, mais saudável a vegetação)[40], [41].
Os satélites de observação da Terra permitem também avaliar diferenças na superfície da Terra, e essas mudanças têm sido registadas em grandes áreas, nomeadamente em aglomerados populacionais. Atualmente, grande parte da população mundial vive em áreas de desenvolvimento urbano contíguo, e este desenvolvimento está a causar mudanças à escala de paisagem no nosso planeta. Assim, os satélites de observação da Terra são mais uma vez uma ferramenta essencial capaz de analisar e monitorizar as mudanças urbanas e ainda prever padrões de mudança nas paisagens urbanas. Imagens de satélites como as que se observam na FIGURA 6 permitem observar as diferenças de ocupação do solo entre os concelhos de Bragança e do Porto de uma forma mais detalhada.
Uma área onde os satélites e as ferramentas de DR via satélite também têm tido um papel importante é na gestão da qualidade do ar[43]. Para criar políticas de controlo da poluição e tomar as decisões corretas atempadamente, é necessário medir e monitorizar a qualidade do ar a cada instante. Para tal existem diferentes categorias de sensores e sistemas de gestão de qualidade do ar, entre os quais se destacam os sensores baseados em plataformas de satélite[44]. O uso de satélites de observação da Terra para auxiliar na monitorização e gestão da qualidade do ar são uma alternativa efetiva em termos de custo, tempo e precisão[45]. Mais ainda, estas ferramentas de análise permitem uma melhor estimativa de poluentes como monóxido de carbono, dióxido de enxofre, dióxido de azoto, dióxido de carbono, metano, etc.[46], [47], [48].
Tendo em conta a informação apresentada reconhece-se que a DR via satélite é uma ferramenta importante na monitorização e gestão de recursos naturais e urbanos, com aplicações em diversas áreas. A grande vantagem transversal aos diferentes meios de aplicação desta ferramenta prende-se com a possibilidade de obter informação em escalas globais, regionais ou locais, sem a necessidade de acesso direto ao local de estudo, reduzindo consideravelmente os custos associados. A DR via satélite desempenha um papel crucial enquanto ferramenta complementar num sistema integrado para prevenção e gestão ambiental, que, atualmente, ainda não substitui completamente as metodologias existentes. Contudo, a contribuição com conhecimento em escala real que trouxe para as diversas áreas de aplicações permite ultrapassar algumas limitações das metodologias tradicionais, revelando que esta ferramenta pode contribuir significativamente para a antecipação de respostas mais eficazes.
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Criada em 15 de Maio de 2023
Revista em 23 de Outubro de 2023
Aceite pelo editor em 15 de Dezembro de 2023