A floresta ripária

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Referência : Ferreira, V., (2022) A floresta ripária, Rev. Ciência Elem., V10(2):023
Autora: Verónica Ferreira
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2022.023]
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[editar] Resumo

Os ribeiros de floresta e a floresta que os ladeia (floresta ripária) estão intimamente ligados, influenciando-se mutuamente. A floresta ripária determina em grande medida as características abióticas (por exemplo, morfologia, qualidade da água) e bióticas (comunidades e processos aquáticos) dos ribeiros. Assim, alterações na floresta ripária podem ter grandes impactos nos ribeiros. A floresta ripária nativa no centro e no norte de Portugal é tipicamente caducifólia e a sua substituição por monoculturas ou a sua invasão por espécies exóticas altera as características dos detritos vegetais produzidos e as características dos ribeiros e, consequentemente, as comunidades e os processos aquáticos. A magnitude destes efeitos depende em parte de quão diferentes são as espécies nativas daquelas que as substituem, sendo tanto maior quanto maiores forem as diferenças entre as espécies. A remoção da floresta ripária, como acontece frequentemente em contexto urbano ou agrícola, leva também a fortes alterações nas comunidades e nos processos aquáticos, com alteração da via trófica que passa de heterotrófica, ou seja, baseada nos detritos vegetais produzidos pela floresta ripária, a autotrófica, baseada na produção primária. A proteção da floresta ripária contribui para o bom estado ecológico dos ribeiros.


Floresta ripária, também designada de ripícola ou ribeirinha, é aquela que ladeia as linhas de água e que estabelece a transição entre o meio aquático e o meio plenamente terrestre (i.e., fora da zona de inundação). A largura da floresta ripária depende da largura da linha de água, da profundidade a que se encontra o lençol freático e do declive das margens, entre outros fatores. Por exemplo, ribeiros em zonas planas têm geralmente florestas ripárias mais largas do que ribeiros em vales mais fechados. A floresta ripária é um ecossistema composto por múltiplas comunidades vegetais (por exemplo, comunidades herbáceas, arbustivas e arbóreas), no entanto, é geralmente definida com base nas características do estrato arbóreo. A estrutura (i.e., a presença de indivíduos de diferentes idades, presença de vários estratos como o arbustivo e o arbóreo), e a composição (i.e., a identidade e diversidade de espécies) da floresta ripária dependem, por exemplo, de fatores climáticos e do hidrodinamismo das linhas de água, que vão determinar a disponibilidade de água. Assim, verificam-se diferenças na estrutura e na composição da floresta ripária à medida que aumenta a distância à linha de água (sucessão), entre linhas de água permanentes e intermitentes (as que têm água o ano todo versus as que secam sazonalmente) e ao longo do gradiente latitudinal (norte — sul). Por exemplo, nas regiões centro e norte de Portugal, a floresta ripária nativa é naturalmente dominada por espécies arbóreas caducifólias como o amieiro (Alnus glutinosa), o freixo (Fraxinus angustifolia), o choupo-negro (Populus nigra), e os salgueiros (Salix spp.), que em geral são tolerantes à inundação e têm crescimento rápido[1] (FIGURA 1). Estas características permitem a sua existência em ambientes potencialmente inundáveis e sujeitos a fortes perturbações (por exemplo, resultantes de cheias) como são as margens das linhas de água. No entanto, o amieiro e os salgueiros necessitam de humidade permanente, pelo que estão geralmente ausentes da floresta ripária em linhas de água intermitentes, onde dominam o freixo e o choupo. Nas regiões a sul do país, onde o stresse hídrico é relevante, a floresta ripária tende a ser dominada por espécies perenifólias arbustivas como o loendro (Nerium oleander) e a tamargueira (Tamarix africana)[2].


FIGURA 1. Aspeto típico de um ribeiro de montanha no centro de Portugal ladeado por floresta caducifólia nativa durante o outono/inverno (Ribeira da Cerdeira, Serra da Lousã, novembro de 2019). Notar a ausência de folhas em grande parte da vegetação ripária. (Andreia Ferreira)


Funções da floresta ripária

A floresta ripária é particularmente importante em ribeiros, que por terem dimensão reduzida (até poucos metros de largura) apresentam uma grande área de interface com o ecossistema terrestre em relação ao seu volume. De facto, não é possível considerar um ribeiro sem considerar a sua floresta ripária, já que a segunda vai determinar grande parte das características do primeiro. A floresta ripária contribui para determinar a morfologia do ribeiro, as características físicas e químicas da água, a composição das comunidades aquáticas, o tipo de processos aquáticos e a taxa a que ocorrem[3] (FIGURA 2).

A floresta ripária, que frequentemente forma um dossel fechado sobre os ribeiros, provoca ensombramento ao intersetar a radiação solar (FIGURA 2). O grau de ensombramento depende (i) da composição da floresta ripária, já que espécies com copas mais esguias (por exemplo o choupo negro) conferem menor ensombramento que espécies com copas mais largas (por exemplo o amieiro), (ii) da sua estrutura, já que a forma e o tamanho da copa variam entre indivíduos jovens e maduros e (iii) da estação do ano, no caso de espécies caducifólias que não têm folhas entre o outono/inverno e a primavera. O ensombramento durante o verão impede que a temperatura da água aumente para valores prejudiciais à vida aquática. Adicionalmente, o mosaico de zonas ensombradas e de zonas onde a radiação solar atinge o leito do ribeiro permite que a cadeia trófica baseada na produção primária (por exemplo, microalgas e plantas aquáticas), que é consumida pelos invertebrados herbívoros e que depende da radiação solar (cadeia autotrófica ou “cadeia trófica verde”) coexista com a cadeia trófica baseada nos detritos vegetais (por exemplo, folhas) produzidos pela floresta ripária, que são consumidos pelos invertebrados detritívoros e que é predominante em ribeiros de floresta (cadeia heterotrófica ou “cadeia trófica castanha”)[4], [5]. A importância relativa de cada cadeia trófica ao longo do ano é, em parte, determinada pela fenologia das espécies caducifólias que dominam a floresta ripária, havendo uma tendência para a cadeia trófica verde adquirir algum protagonismo no início da primavera, altura em que a temperatura e a radiação solar começam a aumentar e as copas das árvores ainda não estão fechadas (no inverno as árvores não têm folhas, mas a produção primária é limitada pela baixa temperatura e pela reduzida radiação solar)[6].

A floresta ripária é a principal fonte de alimento para os organismos aquáticos durante grande parte do ano[7], [8] (FIGURA 2). Em florestas caducifólias, a entrada de detritos vegetais nos ribeiros ocorre principalmente durante o outono/inverno (> 70% da entrada anual)[9]. As folhas compõem a maior parte dos detritos vegetais que entram nos ribeiros (> 60% da entrada anual), mas os ramos, flores e frutos podem também contribuir significativamente para os detritos vegetais dependendo da composição da floresta ripária e da altura do ano[10]. Os detritos vegetais são usados por uma grande variedade de organismos aquáticos, desde microrganismos a invertebrados, muitos deles com o ciclo de vida sincronizado com a queda da folhada outonal[11]. Os detritos vegetais são incorporados na cadeia alimentar castanha mediante um processo designado de decomposição, durante o qual os microrganismos decompositores e os macroinvertebrados trituradores (i) alimentam- se diretamente dos detritos vegetais, incorporando os nutrientes neles contidos na sua própria biomassa, (ii) provocam a libertação de partículas finas que são consumidas por invertebrados coletores e (iii) provocam a libertação de nutrientes na forma inorgânica que são usados pelos produtores primários e pela comunidade microbiana[12], [13]. A taxa a que os detritos vegetais são decompostos depende grandemente das suas características (por exemplo, dureza, concentração em nutrientes, defesas). Por exemplo, as folhas moles e ricas em nutrientes do amieiro são decompostas mais rapidamente do que as folhas mais duras e pobres em nutrientes dos carvalhos (Quercus spp.) e as folhas, em geral, são decompostas mais rapidamente do que os detritos lenhosos, como ramos[14]. Naturalmente, o processo de decomposição da folhada é preponderante durante o outono/inverno, mas os detritos mais recalcitrantes (por exemplo, folhas duras e materiais lenhosos) podem permanecer nos ribeiros por longos períodos garantindo alimento aos organismos aquáticos fora do período de queda da folhada. Também a entrada de detritos vegetais arrastados do solo da floresta pode acontecer ao longo do ano e assim contribuir para a manutenção da cadeia trófica castanha em épocas em que a queda de detritos vegetais é menor[15].

A floresta ripária desempenha um papel crucial no controlo da entrada de nutrientes nos ribeiros, quer por via da produção (e decomposição) de detritos vegetais, quer por via da libertação ou retenção de nutrientes ao nível das raízes[16] (FIGURA 2). Espécies arbóreas diferentes produzem detritos vegetais com características (por exemplo, concentrações de nutrientes) e em quantidades diferentes, cuja decomposição pode afetar a concentração de nutrientes na água. A decomposição de grandes quantidades de folhada rica em nutrientes pode levar a um aumento, ainda que temporário, da concentração de nutrientes na água, enquanto a decomposição de folhada pobre em nutrientes pode levar a uma diminuição da concentração de nutrientes na água já que a comunidade microbiana terá necessidade de consumir nutrientes dissolvidos para compensar a falta de nutrientes na folhada. O controlo da entrada de nutrientes nos ribeiros ocorre também ao nível das raízes, já que estas podem produzir exsudados ricos em nutrientes ou podem absorver (ou não) os nutrientes adicionados ao solo durante a decomposição de detritos vegetais em meio terrestre[17], [18]. Assim, a composição da floresta ripária pode afetar a concentração de nutrientes na água dependendo da qualidade e quantidade dos detritos vegetais que produz e do grupo funcional a que pertencem as espécies dominantes (serem ou não espécies que estabelecem associação com microrganismos fixadores de azoto). Está amplamente documentado que ribeiros com florestas ripárias dominadas por espécies que estabelecem associação com microrganismos fixadores de azoto (por exemplo, o amieiro) apresentam frequentemente concentrações de azoto na água superiores a ribeiros semelhantes mas com reduzida ou sem representação deste grupo funcional na floresta ripária[19].

A floresta ripária, com o seu intrincado sistema de raízes, garante a contenção das margens e assim contribui para conferir estrutura ao canal e determinar a morfologia dos ribeiros (FIGURA 2). Esta é uma função especialmente importante em ribeiros sujeitos a grande hidrodinamismo e onde o risco de desabamento das margens por erosão é alto. O sistema de raízes contribui também para a retenção de sedimentos finos, evitando a colmatação do canal que levaria à perda de habitats e ao desaparecimento de espécies que dependem de substratos grosseiros (por exemplo, invertebrados raspadores) e daquelas mais sensíveis à abrasão por sedimentos (por exemplo, invertebrados com brânquias expostas como os efemerópteros)[20].

A floresta ripária promove também habitat e refúgio para os organismos aquáticos ao nível das raízes submersas, dos ramos e dos troncos que caem no leito, e das acumulações de detritos vegetais[21] (FIGURA 2). Adicionalmente, os troncos podem contribuir para alterar as características do fluxo de água ao formar barreiras que podem levar à criação de habitats com características de profundidade e de velocidade de corrente distintas das presentes no canal. Por exemplo, um tronco caído pode criar uma pequena represa. Ao aumentarem a variedade de ambientes aquáticos nos ribeiros, estes elementos estruturais permitem a coexistência de um maior número de espécies aquáticas ao (i) diminuírem a interação entre elas, fornecendo refúgio contra predadores e (ii) permitirem a existência de espécies com necessidades específicas (por exemplo, tricópteros especialistas no consumo de madeira).

A floresta ripária oferece refúgio e/ou alimento às muitas espécies aquáticas que usam o ecossistema terrestre em algum momento do seu ciclo de vida[22] (FIGURA 2). Por exemplo, muitos insetos aquáticos, como dípteros, efemerópteros, plecópteros, tricópteros ou odonatas, passam grande parte do seu ciclo de vida submersos, emergindo como adultos alados na primavera com o objetivo de se reproduzirem. Dada a sua forte dependência do meio aquático e curto tempo de vida adulta, estes insetos não se afastam muito dos ribeiros de onde emergiram (com exceção dos odonatas, como as libélulas, que podem efetuar voos de longa distância). Nesta curta fase de vida em ambiente terrestre, que pode durar entre algumas horas a poucos meses, usam a floresta ripária como refúgio, fonte alimento (por exemplo, flores no caso dos insetos que que alimentam de néctar como alguns tricópteros) ou terreno de caça (por exemplo, como no caso das libélulas que caçam insetos adultos em voo). Também a maioria dos vertebrados que habita ou explora os ribeiros (por exemplo, anfíbios, répteis, mamíferos e aves) passa uma parte substancial da sua vida na floresta ripária, onde se refugiam e/ou alimentam.

O número e a magnitude das funções desempenhadas pela floresta ripária dependem das características das espécies que a compõem[23], [24], [25]. Uma floresta ripária diversa poderá garantir diversidade estrutural (variedade de habitats) e de recursos alimentares com efeitos positivos nos ribeiros. De facto, está documentada uma relação positiva entre número de espécies arbóreas na floresta ripária e número de espécies de fungos aquáticos (decompositores microbianos), macroinvertebrados aquáticos e taxas de decomposição de folhada em ribeiros não perturbados do centro de Portugal[26].


FIGURA 2. Algumas funções da floresta ripária: 1. Ensombramento. 2. Produção de detritos vegetais (e.g., folhada; as setas curtas indicam invertebrados trituradores que se alimentam directamente das folhas). 3. Controlo da entrada de nutrientes via a) produção de detritos vegetais e b) libertação/ retenção de nutrientes ao nível das raízes. 4. Contenção das margens e retenção de sedimentos finos. 5. Habitat para organismos aquáticos. 6. Refúgio e alimento para espécies aquáticas.


Alteração da floresta ripária em contexto florestal: monoculturas e invasão

Alterações na floresta ripária podem afetar a morfologia do ribeiro, a quantidade e a qualidade da água, as comunidades e os processos aquáticos[27], [28], [29]. Entre as alterações à floresta ripária mais comuns no centro de Portugal estão a sua substituição por monoculturas de espécies exóticas como o eucalipto (Eucalyptus globulus)[30] e a sua invasão por espécies exóticas como a mimosa (Acacia dealbata)[31] (FIGURA 3). Este tipo de alteração da floresta é geralmente percecionado como menos importante quando comparado com outros tipos de alteração porque os ribeiros continuam em contexto florestal e continua a existir vegetação nas margens. No entanto, as características da floresta ripária são muito relevantes para a sua capacidade de desempenhar as funções abordadas anteriormente. Os efeitos de alterações na floresta ripária são tanto mais fortes quanto maior for a diferença entre as características da vegetação nativa e as características das espécies que a substitui, a extensão da substituição e a sua duração[32], [33], [34]. No entanto, em geral, observa-se uma diminuição da diversidade da vegetação ripária, o que se traduz na diminuição da diversidade dos detritos vegetais que entram nos ribeiros e no subsequente empobrecimento das comunidades aquáticas[35], [36], [37].

No caso dos ribeiros em eucaliptal (FIGURA 3), algumas das alterações em relação aos ribeiros em floresta nativa incluem[38]: (i) maior variação de caudal com aumentos rápidos durante as chuvas em resultado da elevada escorrência superficial (a elevada hidrofobicidade do solo devido à acumulação de óleos dificulta a penetração da água em profundidade) e défice durante os meses mais quentes (a falta de reabastecimento dos lençóis freáticos durante as chuvas e a elevada evapotranspiração em resultado de plantações densas de árvores jovens limitam o volume de água em circulação); (ii) diminuição da qualidade da água (aumento da temperatura no verão por ensombramento pouco eficaz devido ao porte esguio do eucalipto); (iii) alteração da fenologia de detritos vegetais deixando de haver um pico de entrada no outono já que o eucalipto é uma espécie perenifólia, passando a entrada de detritos a estar mais homogeneamente distribuída ao longo do ano, eventualmente com um pico no verão em resultado do stresse hídrico; (iv) diminuição da diversidade de detritos vegetais que passam a ser dominados por folhada de eucalipto; (v) diminuição da qualidade de detritos vegetais, que são mais duros, pobres em nutrientes e ricos em compostos de defesa (óleos); (vi) empobrecimento das comunidades de invertebrados aquáticos que têm menor abundância e riqueza de espécies trituradoras em resultado da baixa qualidade nutritiva da folhada de eucalipto e passam a ser dominadas por espécies de pequeno tamanho, com ciclos de vida curtos como adaptação à redução de caudal no verão; (vi) alteração do funcionamento do ecossistema como seja a diminuição da taxa de decomposição de detritos vegetais em resultado do desaparecimento dos invertebrados trituradores e das características mais recalcitrantes dos detritos.


FIGURA 3. Ribeiros no centro de Portugal com floresta ripária alterada em contexto florestal. A) Um ribeiro com eucalipto (Eucalyptus globulus) nas margens (Ribeira do Lázaro, Serra do Caramulo, janeiro de 2015). B) Um ribeiro onde grande parte da floresta nativa das margens foi substituída pela invasora mimosa (Acacia dealbata) (Ribeira de São João, Serra da Lousã, fevereiro de 2017). Notar que ambas as imagens são de inverno (comparar com a FIGURA 1). (Andreia Ferreira)

No caso dos ribeiros em acacial (Acacia dealbata e Acacia melanoxylon) (FIGURA 3), algumas das alterações em relação aos ribeiros em floresta nativa incluem[39], [40]: (i) alteração da qualidade da água devido a um aumento da concentração de azoto dissolvido já que as acácias são leguminosas fixando o azoto atmosférico; (ii) alteração da fenologia de detritos vegetais (deixa de haver um pico de entrada no outono já que as acácias são espécies perenifólias); (iii) alteração da diversidade de detritos vegetais (detritos pouco diversos e dominados por mimosa); (iv) alteração da qualidade de detritos vegetais uma vez que os filódios de A. melanoxylon são muito duros e os folíolos de A. dealbata são muito pequenos; (v) alteração das comunidades de fungos aquáticos que respondem a alterações nas características dos detritos vegetais e na concentração de azoto na água; (vi) alteração do funcionamento do ecossistema com a diminuição da taxa de decomposição de detritos vegetais por estes serem mais recalcitrantes.


Alteração da floresta ripária em contexto urbano e agrícola: remoção e espécies exóticas

Em contextos humanizados, a floresta ripária limita-se frequentemente a uma estreita faixa de vegetação, muitas vezes dominada por espécies exóticas como as canas (Arundo donax), ou está mesmo ausente (FIGURAS 4 e 5). As alterações sofridas por estes ribeiros ao nível da qualidade da água, das comunidades e dos processos aquáticos são profundas e não resultam apenas da remoção da vegetação ripária ou da presença de espécies exóticas já que estes ribeiros estão inseridos num contexto muito alterado (urbanização, agricultura). No entanto, há alterações que podem facilmente ser atribuídas a alterações da floresta ripária e é sobre estas que vamos centrar a nossa atenção[41].


FIGURA 4. Ribeiro em contexto agrícola e urbano no centro de Portugal (Ribeira da Quinta de Santa Apolónia, Coimbra), onde são visíveis três zonas com base nas características da floresta ripária: 1. Zona em contexto urbano sem floresta ripária (na ausência de ensombramento há um grande desenvolvimento de plantas aquáticas o que confere ao ribeiro a cor verde). 2. Zona em contexto mais agrícola com alguma floresta ripária de espécies nativas, como o freixo e os salgueiros, e canas. 3. Zona em contexto agrícola com a floresta ripária reduzida a uma linha de árvores esparsas nas margens do ribeiro e canas. (Google Earth)

A redução, ou mesmo ausência, de ensombramento leva ao aumento da temperatura da água no verão e, consequentemente, ao desaparecimento de espécies que necessitam de água fria. Paralelamente há a proliferação de algas e de plantas aquáticas, principalmente no tempo quente e na presença de altas concentrações de nutrientes na água, o que pode levar a condições de anóxia em alguns períodos e, consequentemente, à morte de organismos aquáticos. A proliferação de algas e de plantas aquáticas e a diminuição da entrada de detritos vegetais, leva ao aumento da importância relativa da cadeia trófica verde em relação à cadeia trófica castanha com todos os impactos ao nível da composição das comunidades aquáticas que isso implica (por exemplo, diminuição de trituradores, aumento de raspadores). Na ausência da floresta ripária, ocorre maior entrada de sedimentos finos, ou até mesmo o desabamento das margens, com a consequente colmatação do leito e o assoreamento do canal e, logo, o desaparecimento de organismos sensíveis à abrasão por sedimentos finos ou que dependem de sedimentos grosseiros. Com a remoção da floresta ripária desaparece também a função de tampão em relação às atividades humanas com o consequente aumento da entrada de nutrientes e de poluentes no ribeiro.


FIGURA 5. Ribeiros no centro de Portugal com floresta alterada. A) Um ribeiro em contexto urbano sem floresta ripária (Ribeira da Quinta das Flores, Coimbra, fevereiro 2010). B) Um ribeiro em contexto agrícola sem floresta ripária (Ribeira do Nabão, Serra do Sicó, dezembro 2019). C) Um ribeiro em contexto agrícola com a floresta ripária substituída por canas (Ribeira do Botão, Coimbra, fevereiro 2006). (Verónica Ferreira).


Proteção e recuperação da floresta ripária

A dependência dos ribeiros em relação à floresta ripária torna necessária a proteção da segunda com vista à manutenção da integridade ecológica (integridade das comunidades e dos processos aquáticos) dos primeiros. A Lei da Água[42] estabelece em 10 m a largura de cada margem em águas não navegáveis nem flutuáveis (onde se incluem os ribeiros) e, no seu artigo 33.º, apresenta as “medidas de conservação e reabilitação da rede hidrográfica e zonas ribeirinhas” onde se inclui “a reabilitação de linhas de água degradadas e das zonas ribeirinhas” (alínea a) e a “renaturalização e valorização ambiental e paisagística das linhas de água e das zonas envolventes” (alínea e). Assim, independentemente do uso do solo (florestal, agrícola, urbano), a floresta ripária está legalmente protegida em cada margem numa extensão de 10 m de largura perpendicular ao ribeiro, sendo esta a área a recuperar em caso de degradação.

Uma vez que a limpeza de cursos de água é uma obrigação legal, para evitar que esta possa entrar em conflito com o disposto na Lei da Água (ver acima), o edital N.º 1/2017 da Agência Portuguesa do Ambiente apresenta as normas para a limpeza de cursos de água não navegáveis nem flutuáveis onde refere que deve ser possível observar “vegetação ribeirinha em contínuo ao longo das margens”, “margens naturais ou naturalizadas", “grande diversidade de animais e plantas”, devendo ser evitado “o corte total da vegetação e contaminação agrícola”, “a ocupação total das margens por campos agrícolas”, “as podas devastadoras”, “o corte total da galeria de vegetação ribeirinha”. Segundo o mesmo edital, os trabalhos de limpeza devem “permitir e preservar a vegetação e fauna autóctones características da região”, “prever a realização da poda de formação da vegetação existente para garantir o ensombramento do leito”, “atender a que o corte da vegetação nunca pode ser total”, “evitar a remoção da vegetação fixadora das margens”.

A recuperação da floresta ripária é um passo fundamental na tentativa de mitigar alguns dos efeitos negativos que a sua degradação tem nos ribeiros. No entanto, muitas vezes não é possível uma intervenção com vista à reversão do processo de degradação, ou não é possível fazer retornar o sistema ribeirinho à situação original (antes da perturbação), por motivos vários que incluem: (i) área afetada muito extensa e/ou de difícil acesso, (ii) alteração simultânea em outros fatores (por exemplo, uso do solo), (iii) custo da intervenção elevado, (iv) intervenção demorada e/ou com necessidade de acompanhamento a longo prazo (por exemplo, controlo de espécies invasoras). Ainda assim, a recuperação da vegetação ripária tem vindo a ser implementada em contextos variados, geralmente a escala reduzida (i.e., numa faixa estreita e numa curta extensão), com o objetivo de recuperar alguns serviços (i.e., benefícios que o ecossistema produz para as populações humanas) por via da recuperação de alguns aspetos estruturais (por exemplo, comunidades) e funções (por exemplo, decomposição de detritos vegetais) (FIGURA 6). Por exemplo, a recuperação da vegetação ripária pela plantação de árvores de espécies nativas, com o consequente ensombramento do ribeiro, limitará o desenvolvimento excessivo de algas e de plantas aquáticas o que contribuirá para a melhoria da qualidade da água.


FIGURA 6. Ribeira no centro de Portugal em contexto urbano alvo de medidas de recuperação (limitadas pela falta de espaço) onde é visível: 1. A presença de canavial em substituição da floresta nativa na margem direita. 2. O crescimento exuberante de plantas aquáticas que cobrem toda a linha a água, em resultado da falta de ensombramento e do excesso de nutrientes. 3. Plantação recente de espécies ripárias nativas (amieiro, salgueiro) na margem esquerda com o objetivo de aumentar o ensombramento (Ribeira da Quinta das Flores, Coimbra, agosto 2021). (Verónica Ferreira)

A forte dependência dos ribeiros em relação à floresta ripária (e vice-versa) leva a que se fale no “meta-ecossistema ribeiro-floresta” ou “meta-ecossistema ribeirinho”, já que um ecossistema não pode ser visto sem o outro. Esta visão integrativa reconhece a íntima ligação entre estes ecossistemas adjacentes, permite uma melhor compreensão dos fluxos de energia, matéria e organismos entre os ribeiros e a floresta ripária e torna possível antecipar alterações nos ribeiros em resultado de alterações na floresta. Programas de restauro devem também ter em conta o conceito de meta-ecossistema ribeirinho e considerar a mútua influência que um ecossistema tem sobre o outro.


Agradecimentos

A autora beneficiou de apoio financeiro (CEEIND/02484/2018) e logístico (UIDB/04292/2020) concedidos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

[editar] Referências

  1. AGUIAR, F. C. et al., Rios de Portugal. Comunidades, Processos e Alterações, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, p 123–146. 2019.
  2. AGUIAR, F. C. et al., Rios de Portugal. Comunidades, Processos e Alterações, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, p 123–146. 2019.
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  4. TOLKKINEN, M. J. et al., Streams and riparian forests depend on each other: A review with a special focus on microbes, Forest Ecol. Manage, 462, 117962. 2020.
  5. FERREIRA, V. et al., Rios de Portugal. Comunidades, Processos e Alterações, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, p 281–312. 2019.
  6. FERREIRA, V. et al., Rios de Portugal. Comunidades, Processos e Alterações, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, p 281–312. 2019.
  7. TOLKKINEN, M. J. et al., Streams and riparian forests depend on each other: A review with a special focus on microbes, Forest Ecol. Manage, 462, 117962. 2020.
  8. FERREIRA, V. et al., Rios de Portugal. Comunidades, Processos e Alterações, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, p 281–312. 2019.
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  16. TOLKKINEN, M. J. et al., Streams and riparian forests depend on each other: A review with a special focus on microbes, Forest Ecol. Manage, 462, 117962. 2020.
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Criada em 20 de Agosto de 2021
Revista em 18 de Janeiro de 2022
Aceite pelo editor em 15 de Junho de 2022