A geodiversidade urbana como recurso educativo

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Referência : Silva, C. M., Pereira, S., (2021) A geodiversidade urbana como recurso educativo, Rev. Ciência Elem., V9(3):051
Autor: Carlos Marques da Silva e Sofia Pereira
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2021.051]
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[editar] Resumo

A geodiversidade é a variedade natural de aspetos geológicos, geomorfológicos e dos solos que constituem o planeta Terra, incluindo as suas associações, relações, propriedades e sistemas. Em articulação com a biodiversidade, é fundamental para a integração dos aspetos abióticos e bióticos que constituem a natureza. A geodiversidade apresenta variadíssimos valores, de entre os quais aqui se destaca o valor educativo. Está representada amplamente em ambientes urbanizados, por via do contexto físico e geológico das povoações, assim como das rochas e dos materiais de construção que as constituem. Os elementos de geodiversidade patentes na cidade, bem como as marcas culturais resultantes da interação das comunidades humanas com eles, são um recurso educativo inestimável, aos mais variados níveis, e imediatamente acessível em todos os contextos urbanos.


O que é a geodiversidade?

O termo geodiversidade surgiu em 1993, primeiro em publicações alemãs sobre conservação de formas de relevo e, de seguida, em trabalhos australianos sobre ocorrências geológicas notáveis[1], [2]. Segundo a formulação original1, geodiversidade é a variedade de elementos, de processos e de sistemas geológicos que constituem a Terra. Desde então o conceito – retendo o seu núcleo original – tornou-se mais abrangente. Atualmente, engloba e unifica toda a natureza abiótica, sendo vista como a diversidade natural de aspetos geológicos, geomorfológicos e dos solos, incluindo as suas associações, relações, propriedades e sistemas[3]. Os elementos abióticos que constituem o planeta Terra, as rochas, os fósseis, os minerais, a água subterrânea, os glaciares, as formas de relevo, as bacias oceânicas, os vulcões, etc., são todos parte da geodiversidade. O conceito é hoje em dia amplamente usado pela comunidade (geo)científica, sobretudo em contextos de geoconservação e de património geológico[4].


FIGURA 1. A natureza é una e indivisível e é geobiológica. Canyonlands National Park, Utah, USA. (Foto: CMS).

O mundo geológico e o biológico, quando vistos de um ponto de vista mais simplista e tradicional, como o é por parte do grande público, por exemplo, são claramente distintos e completamente independentes. Compara-se um adorável panda com uma simples pedra de calçada e as diferenças são óbvias e, deste ponto de vista rudimentar, intransponíveis. Contudo, a natureza é una e é geobiológica[5], integrando uma vertente, abiótica, predominantemente geológica, e outra biótica, biológica (FIGURA 1).

De onde virá esta visão algo segregacionista da natureza? Enquanto entidades biológicas, os humanos têm uma tendência inerente para valorizar os aspetos bióticos do mundo natural. Em termos cronológicos, a escala temporal dos fenómenos biológicos a que temos normalmente acesso está mais em consonância com a cadência da nossa vida quotidiana. Apesar dos sismos e dos vulcões, por exemplo, a natureza geológica parece- -nos perene e estática e, como tal, distante da nossa realidade orgânica. Por fim, generalizou- se a ideia de que a natureza é “viva” e isso gera a tendência subconsciente para se dar mais atenção aos seus aspetos biológicos. A tudo isto junta-se o facto de no ensino, aos mais variados níveis, essa abordagem continuar a ser, por inércia, passivamente, a mais comum. Se googlarmos Biodiversidade+Ensino+Portugal obteremos cerca de 1,4 milhões de resultados, enquanto se o fizermos para Geodiversidade+Ensino+Portugal encontraremos apenas 43000, o que é revelador da enorme assimetria na atenção dada à geodiversidade.

Contudo, as vertentes geo e bio da natureza estão intimamente ligadas, sendo tão indissociáveis como a fome e a vontade de comer. Diferentes, sem dúvida, mas inseparáveis. E deveria ser deste ponto de vista de base que deveriam ser abordadas. Por exemplo, a vida na Terra teve origem abiótica. Sem contexto geológico, sem a componente física dos ecossistemas, não haveria nem vida, nem biodiversidade. Há rochas que são maioritariamente formadas por elementos de origem biológica: as rochas biogénicas (FIGURA 2). Os combustíveis fósseis têm origem biológica, chegando até nós como resultado de processos geológicos, e os organismos segregam elementos esqueléticos bio-mineralizados com composição química e propriedades físicas idênticas às dos minerais abióticos. Ou seja, facilmente se constata que as fronteiras entre o abiótico e o biótico no mundo natural são difusas. E, depois, ainda existem os fósseis: entidades geológicas com origem biológica identificável, mais ou menos remota, constituindo um dos mais eloquentes exemplos de integração dos aspetos biológicos e geológicos no mundo natural. Assim, sobretudo em contexto educativo, não basta achar-se que a natureza é una e que a integração natural faz sentido. É necessário encorajar essa visão holística do mundo natural com objetivos, conteúdos e atitudes que, eliminando barreiras conceptuais artificiais, a promovam.

Não obstante a óbvia importância da geodiversidade, somente quase três décadas depois da formulação do conceito e 21 anos após o estabelecido do Dia Internacional da Biodiversidade foi instituído o Dia Internacional da Geodiversidade. Este dia internacional, resultado de proposta conjunta de Portugal e do Reino Unido, foi aprovado por unanimidade na 211.ª sessão do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) realizada a 16 de Abril de 2021 e será assinalado a 6 de Outubro de cada ano a partir de 2022[6],[7].


FIGURA 2. A natureza é una e indivisível e é geobiológica. Calcário biogénico, conquífero, formado em mais de 50% por fósseis de conchas e bioclastos de bivalves Gastrana sp. Albufeira, Miocénico, Formação Lagos - Portimão. (Foto: CMS).

A geodiversidade agrega inúmeros valores[8]. Talvez o mais óbvio deles seja o valor económico, por via dos recursos geológicos[9]. Mas os serviços prestados pela geodiversidade vão muito além do económico, passando pelo científico, cultural e estético, lúdico, de divulgação científica, etc.[10]. Estes valores não diretamente económicos prendem-se com a importância atribuída pela sociedade, pela humanidade, a aspetos do mundo natural abiótico como resultado do seu significado cultural, social ou comunitário. Um dos valores da geodiversidade que em meio urbano se manifesta de modo assaz evidente é o valor educativo.


A geodiversidade no ensino (secundário)

Tomando os programas das disciplinas de Biologia e Geologia do 10.º e 11.º ano de escolaridade[11], [12] como exemplo, a biodiversidade é referida (mas pouco) enquanto resultado da evolução biológica e a propósito da necessidade da sua preservação. A geodiversidade, pelo contrário, nunca é mencionada, nem mesmo no programa de Geologia do 12.º ano[13]. Não há, por exemplo, qualquer referência à geodiversidade urbana no tópico “Recursos”, apesar de se mencionarem recursos multimédia, museus de história natural, jardins botânicos, jardins com interesse biológico, coleções de amostras, vídeos, sites na Internet, reservas naturais e paisagens protegidas, etc..

Nos programas, salienta-se a origem geológica de muitos dos materiais que a humanidade utiliza. Contudo, não existe qualquer menção à Geologia em contexto urbano ou à utilização de materiais geológicos na sua construção. São referidos muros, edificações humanas, mas apenas a propósito dos ecossistemas, como elementos a ter em conta em atividades de campo em diferentes ambientes. Afirma-se que: “O conhecimento geológico é essencial para a construção de acessibilidades (estradas, pontes, túneis, ...), para a construção de (…) aeroportos e portos, (…) barragens, (…).” mas não há uma única referência a algo que está presente de modo mais transversal e mais fundamental nas nossas vidas que tudo o que antes foi referido: o ambiente urbano e os edifícios em que vivemos.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas[14], [15], desde 2007 que a maioria da população da Terra habita em contexto citadino. Esta tendência deverá acentuar-se no futuro. Acontece que a cidade, enquanto ambiente artificial, construído, assenta – literalmente – no contexto físico, geológico, em que é implantada e, além disso, depende essencialmente de materiais geológicos para a sua edificação.

Neste contexto, não integrar explicitamente o conceito de geodiversidade no ensino e, por maioria de razão, não usar aqueles aspetos da geodiversidade que encontramos em ambiente urbano, como parte do nosso quotidiano, perpetua uma visão fragmentada e reducionista da natureza, por um lado, e, por outro, constitui um flagrante desperdício de recursos educativos relevantes, abundantes e imediatamente disponíveis[16], [17], [18], [19], [20], [21], [22], [23], <[24]. Sim, e gratuitos! Recursos que abarcam desde o contexto geológico e geomorfológico em que a cidade é edificada até aos fenómenos geológicos – cheias, sismos, deslizamentos de terreno, etc. – que a moldam e afetam e aos afloramentos naturais perdidos no seu seio. E ainda o manancial de elementos geológicos que são os materiais com que os seus edifícios, monumentos e pavimentos são construídos, as rochas ornamentais e os fósseis que nelas ocorrem. Para já não falar do impacto cultural e societal da geodiversidade nas artes, na história, na cultura e no sentimento de identidade das comunidades urbanas, na interface entre a Geologia e outras vertentes da atividade e dos interesses humanos, nomeadamente os abrangidos pelas Ciências Sociais.


O potencial educativo da geodiversidade urbana

As manifestações da geodiversidade em contexto urbano (FIGURA 3), estando imediatamente disponíveis em todos os contextos edificados, frequentemente no próprio edifício da escola, na rua ou até na casa de cada um de nós, docentes e discentes, é tão ubíqua e abundante que se torna invisível. É como o ar que respiramos. É fundamental, está em todo o lado e, no entanto, nem o notamos. “Hiding in plain site”, diriam os autores anglosaxónicos! Este recurso educativo não necessita de equipamento especial para ser utilizado, nem de financiamento para aquisição, tão pouco envolve despesas de deslocação para ser usufruído. Usando a geodiversidade existente em torno da escola, nas imediações de todas as escolas!, podem realizar-se saídas de campo, atividades fora da sala de estudo, no tempo previsto para uma aula convencional. Frequentemente, nem é necessário sair da escola para, fora da sala de aula, se ter acesso a ele[25].

As aplicações educativas da geodiversidade urbana abrangem desde aspetos relacionados com os objetivos apontados, por exemplo, nos programas do 10.º, 11.º e do 12.º ano da escolaridade obrigatória em Portugal, até aos conteúdos programáticos a abordar, passando pelas competências e as atitudes a desenvolver.


FIGURA 3. Aspetos de geodiversidade em contexto urbano e exemplos de alguns dos seus valores na Baixa de Lisboa. A) A Colina do Castelo vista do Terreiro do Paço (Valor estético, paisagístico, modelação da paisagem urbana e identidade local: Cidade das Sete Colinas). B) O Terreiro do Paço e a sua ligação ao estuário Rio Tejo (Valor cultural, história geológica e urbanismo pós-Terramoto de 1755). C) O calcário liós nas ruínas da igreja do Convento do Carmo (Valor económico da geodiversidade, dos materiais de construção, e memória do Terramoto de 1755). (Fotos dos autores).

Ao nível dos objetivos e das competências, por exemplo, a geodiversidade urbana permite aplicar os conhecimentos adquiridos na sala de aula a novos contextos e a novos problemas, como sejam, a identificação e interpretação de litologias, de fósseis e dos paleoambientes que registam. Reconhecer as rochas ornamentais e de construção como recurso geológico e identificar as suas utilidades e aplicações económicas na vida quotidiana. Usar a geodiversidade urbana como tema de investigação, sobre o qual são preparados relatórios e apresentações, desenvolvendo assim capacidades de comunicação escrita e oral, etc.. A geodiversidade urbana pode ainda ser usada para promover uma visão integradora da Ciência, estabelecendo claramente relações entre disciplinas científicas (por exemplo, entre a Geologia e a Biologia por via dos fósseis e das rochas biogénicas) e entre estas e a sociedade e o ambiente (urbano e natural).

Como tema de trabalhos de grupo autónomos, a geodiversidade urbana pode ainda ser usada como catalisador do desenvolvimento de atitudes e valores inerentes ao trabalho individual e cooperativo. Ela permite - por exemplo - aos alunos trazer as suas experiências de vida, a “sua geodiversidade urbana”, a da sua rua, da sua casa, para o processo conjunto de ensino e aprendizagem, contribuindo para ele com algo de seu, da sua vivência. Por fim, no plano dos conteúdos atitudinais, pode contribuir para o desenvolvimento de comportamentos e valores de cidadania ao abordarem-se aspetos que a ameaçam (degradação e desordenamento urbano, vandalismo, uso abusivo do espaço público por publicidade, etc.) e ao promover-se atividades visando a sua valorização e preservação. A ligação da geodiversidade às Ciências Sociais, por via do seu valor cultural e das atividades resultantes do seu reconhecimento, é também uma mais-valia. A geodiversidade está ligada à história local, podendo ser mobiliza - da para temas da disciplina de História. Está ligada (veremos isso mais abaixo) à evolução do pensamento filosófico, podendo ser usada na abordagem de temas da disciplina de Filosofia. Pode também ser usada com sucesso, quer como exemplo de aplicação, quer como fonte inspiração artística, em Multimédia e em Educação Visual e Tecnológica.

No plano dos conteúdos procedimentais, a geodiversidade urbana permite desenvolver atividades fora da sala de aula[26], [27], [28] (orientadas ou autónomas) baseadas na observação e na recolha de dados (por exemplo, sobre rochas e fósseis[29]), na análise da informação recolhida e na realização de inferências (na interpretação paleoambiental com base nas rochas sedimentares e nos fósseis). Os aspetos de geodiversidade urbana identificados podem ainda servir de base para a construção de páginas internet de divulgação ou a criação de códigos QR informativos em colaboração com outras disciplinas (Informática, EVT, Multimédia, etc.), usando tecnologias de informação e de comunicação hoje amplamente acessíveis[30].

Ao nível dos conteúdos programáticos conceptuais, as potencialidades são inúmeras: as rochas e os fósseis, registos da história da Terra; no caso de haver afloramentos naturais urbanos de sequências sedimentares (por mais limitados que sejam), a idade relativa dos estratos, princípios básicos do raciocínio geológico; interpretação de paleoambientes, por via das rochas sedimentares (por exemplo, os carbonatos marinhos e a temperatura das águas) e dos fósseis que os registam; preservação da natureza e da geodiversidade (natural e urbana) e desenvolvimento sustentável, etc..

A geodiversidade urbana está, por exemplo, particularmente bem-adaptada a ajudar a “valorizar o trabalho prático como parte integrante e fundamental dos processos de ensino e aprendizagem dos conteúdos de cada unidade (…) entendido como um conceito abrangente que engloba atividades (…) que vão desde as que se concretizam com recurso a papel e lápis, às que exigem um laboratório ou uma saída de campo.”[31], [32].

Consoante a localidade, usando a geodiversidade urbana, podem ser explicitamente abordados aspetos tão variados como o ciclo das rochas (por via das litologias), a sismologia (por exemplo, em Lisboa e arredores, o terramoto e o tsunami de 1755 que deixaram marcas até na cultura local), os fósseis, os recursos geológicos (por via dos materiais de construção), a geomorfologia (por via da paisagem e do contexto geológico da cidade) e a história do Planeta (por via da história geológica local e dos fósseis urbanos).

O alcance educativo da geodiversidade urbana - em virtude do carácter integrado, geobiológico da natureza - extravasa, inclusive, os limites convencionais da Geologia e do seu ensino. Por exemplo, os fósseis encontrados associados a contextos urbanos, às rochas ornamentais e aos materiais de construção, podem ser mobilizados com sucesso para a abordagem de vários conteúdos programáticos e para dinamizar atividades, dentro ou fora da sala de aula, orientadas ou autónomas, envolvendo temas da Biologia, nomeadamente, a (paleo)biodiversidade, a (paleo)ecologia, a extinção de grupos biológicos e a evolução da vida. A geodiversidade, se usada em estreita articulação com a biodiversidade, é um elemento fundamental para a construção de um ensino integrado das Ciências da Natureza e para uma compreensão holística geobiológica do mundo natural[33].

De salientar que, neste aspeto da integração da geo e da biodiversidade, bem como do aproveitamento das potencialidades da geodiversidade urbana, frequentemente, a visão e as práticas letivas dos docentes do Ensino Básico e Secundário são bem mais progressistas e proativas que o preconizado nos programas em vigor[34], [35], [36]. Programas esses, infelizmente, já algo datados e requerendo reformulação e adequação aos desafios científicos, pedagógicos e societais que presentemente se colocam às Ciências da Terra e ao seu ensino[37].

Esta temática da geodiversidade e da Paleontologia em contexto urbano aqui agora apresentada, não sendo nova[38], continua inovadora[39], sendo este trabalho o corolário de mais de 20 anos de experiência na divulgação, ensino e promoção destes temas no âmbito das atividades letivas e de outreach da disciplina de Paleontologia do Departamento de Geologia da FCUL[40]. Ao longo de mais de duas décadas foram realizadas inúmeras visitas de campo de divulgação para o grande público e para a comunidade educativa, quer no âmbito da iniciativa Geologia no Verão[41], da Agência Ciência Viva (de 1998 a 2011), quer no das ações de formação do GeoFCUL “Ensino da Paleontologia na Cidade e no Campo: Novas Abordagens” de 2006 a 2014[42]. Foram realizadas inúmeras saídas de campo urbanas, nomeadamente, em colaboração com escolas e associações locais, e integradas em atividades da Liga para a Proteção da Natureza[43] e em Encontros Internacionais da Casa das Ciências realizados em Lisboa. Fundamental, foi também a experiência adquirida na realização de várias páginas internet de divulgação destes temas, quer para Almada[44], [45] e Lisboa[46], em Portugal, quer para a cidade de Huelva, em Espanha[47], [48], [49].


O exemplo do Terreiro do Paço, Lisboa

A geodiversidade urbana é uma entidade complexa e multifacetada construída de pequenos nadas. Cada um dos seus elementos, se visto isoladamente, será uma mera curiosidade quase irrelevante. Contudo, se tomados em conjunto, articuladamente, fazendo parte de uma realidade maior que é a urbe, mas representando uma ligação a um meio natural que a transcende, tornam-se num poderoso instrumento educativo (e cultural e de divulgação da científica)[50].

De seguida serão ilustrados, pontualmente, pois os exemplos são inúmeros, alguns dos variadíssimos aspetos (e das perspetivas) em que a geodiversidade urbana poderá ser fácil e eficazmente mobilizada para o ensino da Geologia e, também, da Biologia, tomando como ponto fulcral, unicamente a título de exemplo, o Terreiro do Paço, em Lisboa (FIGURA 3A) e B)). Será salientada a relação entre a geodiversidade, o contexto urbano e o seu potencial educativo. Com vista a possibilitar a obtenção de informação adicional sobre os aspetos focados, de modo a poder desenvolver-se a abordagem concreta dos elementos de geodiversidade descritos, o leitor será remetido para a bibliografia e/ou webgrafia de qualidade existente.


A (geo)morfologia da cidade

O ambiente urbano é moldado pelo contexto físico, geológico e geográfico, em que é implantado. Por via da topografia local, condicionada pela Geologia subjacente, Lisboa é uma cidade com colinas (FIGURA 3A)). É também uma urbe posicionada à beira de um rio, o Tejo, próximo da sua foz, o que lhe valeu o epíteto de “mãe de marinheiros” (FIGURA 3B)), estando o Terreiro do Paço localizado paredes meias com a Ribeira das Naus, localização dos antigos estaleiros navais das Descobertas. Este contexto particular resulta, claro, da sua evolução geológica regional desde o Miocénico à atualidade[51], [52].


FIGURA 4. Geodiversidade (sub)urbana de Lisboa: a costeira, a forma de relevo assimétrica, sobre a qual Almada está edificada. Bem patentes as suas vertentes erosiva (abrupta, formando escarpa) e estrutural (suave). Esta gravura, em que uma forma de relevo é figurada de modo proeminente, dominando a paisagem, é um bom exemplo do valor da geodiversidade como fonte de inspiração artística de fruição estética.

Este mesmo contexto geológico determina que, na Margem Sul, bem visível do Terreiro do Paço, exista uma forma de relevo assimétrica particular, uma costeira (FIGURA 4). A costeira, ao contrário das colinas, é definida por uma vertente estrutural (suavemente inclinada) e outra erosiva (abrupta). Neste caso, a vertente sul, a suave, e a norte, a escarpa ribeirinha, associadas à estrutura geológica suavemente monoclinal subjacente, inclinando para sul, e potenciada pela existência, no seu topo, de estratos de idade miocénica mais resistentes, formando cornija. Foi no cimo desta costeira, por razões que a História e o senso comum explicam, que a localidade de Almada foi edificada, aspeto bem patente no seu brasão[53], [54], exemplo flagrante do papel da geodiversidade como elemento gerador de cultura e de identidade local (FIGURA 5).


Valores evidenciados: Valor cultural da geodiversidade (importância do contexto geográfico e geológico na história da cidade), estético (fruição da paisagem) e de identidade local. Ligação aos vários conteúdos: Identificação de formas de relvo.

Interação com outras disciplinas: A importância da localização geográfica (Geografia) na história da cidade (História) e a paisagem como fonte de inspiração artística (EVT e EV).


FIGURA 5. O enquadramento físico da cidade, a sua geomorfologia e a identidade local, no exemplo de Almada e do seu brasão4. Ao fundo, na Margem Esquerda do Tejo, a costeira sobre a qual a cidade foi implantada, vista de Norte[55]. 1. O Rio Tejo. 2. A arriba ribeirinha e costeira sobre a qual Almada se implantou. 3. O castelo de Almada, a povoação, no topo da costeira, em posição defensiva vantajosa, sobranceira ao Rio Tejo.

O Terramoto de 1755, os riscos geológicos e o ordenamento urbano

De todos os eventos geológicos que afetaram Lisboa ao longo dos muitos séculos da sua existência, aquele que deixou marcas mais profundas, física e emocionalmente, foi o Terramoto de 1755. O Grande Sismo de Lisboa teve repercussão internacional, sendo referido dramaticamente por Voltaire no seu Poème sur le Desastre de Lisbonne de 1756[56], [57], revelando o profundo impacto social e cultural que acontecimentos geológicos, elementos da geodiversidade, podem ter na vida de todos nós. Em Cândido, ou o Optimismo[58], de 1759, Voltaire, face à arbitrariedade da sobrevivência num acontecimento tão avassalador e incontrolável como o sismo de Lisboa, criticou satiricamente o otimismo de Gottfried Leibniz e de Alexander Pope, materializado na ideia de que “este é o melhor dos mundos possíveis”.

As cicatrizes deixadas pelo terrível abalo telúrico estão ainda bem patentes na cidade. Uma das consequências mais evidentes do terramoto foi a destruição da Baixa, que na altura era boa parte da cidade e, sobretudo, a parte mais moderna e vibrante, e a sua subsequente reconstrução segundo a lógica urbanística da segunda metade do séc. XVIII. Esta circunstância está bem patente no traçado regular e ortogonal das ruas da Baixa Pombalina, com hierarquia de vias definida, ligando duas amplas praças (Terreiro do Paço e Rossio), em contraste com a estrutura concêntrica, sem praças, emanando do castelo, do casco medieval da cidade, condicionada pela sua história mais antiga e pelo relevo local (FIGURA 6).


FIGURA 6. O urbanismo de Lisboa e as cicatrizes do Terramoto de 1775. Note-se o ordenamento ortogonal da Baixa Pombalina, articulando o Terreiro do Paço e o Rossio, em contraste com o desenvolvimento concêntrico do casco medieval, centrado no Castelo de S. Jorge e condicionado pelo relevo da Colina do Castelo. (Adaptada de Google Earth).

Por outro lado, subsistem na Baixa ruínas desse fatal sucesso, ainda que parcialmente reconstruídas ao gosto neogótico e romântico, nomeadamente, a nave da igreja do Convento do Carmo. Ditos populares como “cair o Carmo e a Trindade” são também testemunho do trauma causado pelo grande terramoto. Muitos outros aspetos, alguns bem conhecidos, mas algo esquecidos, podem ser invocados e mobilizados para abordar o risco sísmico usando a Baixa de Lisboa como exemplo, nomeadamente a inovadora construção antissísmica pombalina em “gaiola”. Na Margem Sul, frente ao Terreiro do Paço, em Cacilhas, a geomitologia local evoca o milagre de N.S. do Bom Sucesso, que na manhã do fatídico dia teria salvado a povoação do mesmo destino funesto de Lisboa, detendo o avanço inexorável da onda do tsunami, prodígio que até aos dias de hoje é comemorado anualmente a 1 de Novembro com procissão evocativa.


Valores evidenciados: Valor cultural da geodiversidade (importância dos eventos geológicos na história e no urbanismo da cidade).

Ligação aos vários conteúdos: Sismologia, Minimização de riscos sísmicos, Tectónica, sismicidade, riscos geológicos.

Interação com outras disciplinas: A importância dos eventos geológicos na história da cidade e na evolução do pensamento humano (História, Filosofia).


O liós, a rocha de aparato de Lisboa

Uma das mais evidentes manifestações da geodiversidade em meio urbano são as rochas usadas na construção da cidade. São também uma das mais imediata e facilmente incorporáveis em atividades pedagógicas. No Terreiro do Paço, como em toda a Lisboa monumental, marca presença relevante uma rocha ornamental emblemática da capital portuguesa: o liós (ou lioz). A extrema relevância económica e, sobretudo, cultural deste recurso geológico está bem patente no facto de, desde 2019, estar classificado como Global Heritage Stone Resource pela UNESCO[59]. Trata-se de uma rocha de aparato, profusamente usada pela sua durabilidade e muito apreciada pelo seu aspeto estético, onerosa e, como tal, apenas empregue em circunstâncias em que a nobreza dos fins justifica o importante dispêndio financeiro associado ao seu uso[60]. O Liós é, de resto, na Baixa de Lisboa um excelente exemplo de um outro aspeto do valor cultural da geodiversidade, o de inspiração artística, ao ser copiado em azulejos de fachada oitocentistas realizados com recurso à técnica da pintura de fingimento, moldando assim as artes decorativas lisboetas[61].

O liós é um calcário de idade cretácica, de coloração variável, de cor branca a avermelhada, calcítico, microcristalino, muito fossilífero, mostrando abundantes bioclastos e fósseis de bivalves rudistas[62], ocorrendo na região de Lisboa - Sintra. Liós (do francês liois, hoje liais, de onde também resulta Lias[63], o Jurássico Inferior) é uma designação da indústria da rocha ornamental, não é um termo geológico, litológico, em si mesmo.

Hoje em dia o liós é extraído, sobretudo, na região da Terrugem - Pero Pinheiro (Sintra). Esta rocha, usada em Lisboa desde os tempos da Olissipo romana[64], [65], é parte indissociável da imagem e da cultura e, portanto, da identidade da cidade. Lisboa e o Porto, por exemplo, são cidades claramente distintas, até do ponto de vista cromático, e essas diferenças assentam de modo significativo no facto de o contexto geológico em que foram erigidas e os materiais de construção por excelência usados na sua edificação (liós em Lisboa e granitóides no Porto) serem diferentes. Curiosamente, o que têm em comum, de um ponto de vista físico, relevo, localização junto à foz de um rio, também tem forte componente geológica.


Valores evidenciados: Valor económico da geodiversidade (recursos geológicos, material de construção), cultural (importância do liós na história e urbanismo de Lisboa) e de identidade local (o liós e o aspecto da cidade).

Ligação aos vários conteúdos: Recursos geológicos e sua gestão (a sobreexploração em pedreiras), rochas sedimentares, fósseis, tempo geológico, etc..

Interação com outras disciplinas: A importância do contexto e dos materiais geológicos na modelação da cidade e na construção dos seus edifícios e monumentos (Geografia, EVT). A reconstrução da Baixa após o Terramoto de 1755 (História).


As rochas portuguesas nos pavimentos tradicionais da Baixa Pombalina

Um tipo de pavimento urbano típico de Lisboa é a sua calçada artística (FIGURA 7). A famosa calçada portuguesa, cuja aplicação extravasa Portugal e o mundo de influência cultural lusa, nasceu em Lisboa em meados do séc. XIX, primeiro - de modo localizado - no presídio do Castelo de S. Jorge[66] e, de seguida, de modo extensivo no Rossio, com a aplicação do padrão Mar Largo que ainda hoje marca o pavimento da Praça D. Pedro IV (FIGURA 7B)). A sua importância como elemento de identidade cultural é de tal modo importante que em 2021 foi apresentada a candidatura da calçada portuguesa a Património Cultural Imaterial Nacional[67]. Para além de já ter sido aplicada em Barcelona na primeira metade do séc. XX, por exemplo, a calçada portuguesa tem presença marcante no Brasil. Basta recordar o calçadão de Copacabana e o seu padrão Mar Largo evocado, inclusive, no segmento “Aquarela do Brasil” do filme de animação “Saludos Amigos” de 1942 de Walt Disney[68].

Na calçada portuguesa artística de Lisboa, apresentando padrões elaborados com (sobretudo) pedras brancas e negras, as litologias mais comuns são o calcário branco Vidraço, o calcário negro de Alqueidão da Serra e, agora já raramente, o basalto de Lisboa[69] (FIGURAS 7 e 8).


FIGURA 7. A calçada portuguesa, manifestação da geodiversidade em contexto urbano e exemplo, entre outros, do seu valor económico, cultural e identitário, foi candidatada a Património Cultural Imaterial Nacional em 2021. A) O pavimento da Praça do Duque da Terceira, Cais do Sodré, e os materiais (calcários brancos e negros e basalto) de que é construído. B) O Rossio e o papel da calçada portuguesa, remontando à década de 1840, na construção da imagem da cidade. C) A calçada portuguesa como peça relevante da identidade da cidade, a par do fado (Património Imaterial UNESCO), dos elétricos, dos seus monumentos, etc.. (Fotos dos autores).

O Vidraço é um calcário compacto de cor clara, normalmente branco a bege, por vezes mais escuro, de idade jurássica. É oriundo do Maciço Calcário Estremenho (MCE), sobretudo da região de Pé da Pedreira (Alcanede, Santarém)[70]. Ocasionalmente, o Vidraço das calçadas apresenta-se fossilífero, sendo os fósseis mais reconhecíveis os de gastrópodes do grupo Nerinea s.l., em secções variadas (por exemplo, como os da FIGURA 10A)). O calcário negro, de idade jurássica, é oriundo de Alqueidão da Serra (MCE, Porto de Mós). Trata- se de um calcário compacto, raramente macrofossilífero, apresentando concentrações elevadas de Enxofre (S), Sílica (Si) e Ferro (Fe). Apresentam também, ocasionalmente, cristais milimétricos de minerais do grupo dos sulfuretos, como pirite e calcopirite. A sua cor negra resulta da presença de matéria orgânica e da influência de metamorfismo de contacto, pela proximidade a intrusão ígnea dolerítica local que acentuou a incarbonização[71]. O basalto, de idade cretácica, em tempos extraído em Alcântara, Ajuda, Campolide e Benfica[72], ainda hoje é obtido na pedreira de Moita da Ladra na região de Vialonga (Vila Franca de Xira), mas já não é usado em calçada portuguesa. Em Lisboa, apenas se conserva em troços de pavimento mais antigos, como na Praça do Duque da Terceira (FIGURA 7A)) e na Rua do Ouro (FIGURA 8A)), localmente.


FIGURA 8. A geodiversidade dos pavimentos tradicionais em Lisboa e o equipamento básico de abordagem da “geodiversidade urbana”. A) Da esquerda para a direita, borrifador de água (para molhar e avivar as superfícies), HCl (Ácido Clorídrico a 5-10%, para identificar rochas carbonatadas ou, não havendo disponível, “Viakal” líquido anticalcário), lupa de bolso, escala gráfica (régua) e/ou escala relacional, por exemplo, uma caneta (para os registos fotográficos). A escala relacional é um objecto familiar, uma caneta, uma moeda, etc., usado como escala. B) Comparação entre o aspeto seco e molhado (borrifado) da mesma superfície no pavimento de liós do Cais das Colunas. C) Pedras brancas, o calcário Vidraço do Jurássico do Maciço Calcário Estremenho (MCE), e pedras negras, o basalto do Cretácico de Lisboa, ou o calcário negro de Alqueidão da Serra do Jurássico do MCE. Notar que, claro, o HCl faz efervescência com os calcários brancos e negros, mas não com o basalto. (Fotos dos autores).

O potencial educativo e de divulgação da Geologia da calçada portuguesa ou de outros pavimentos naturais (calçadas), presentes em praticamente todas as localidades nacionais, é tão imediato que, salientando a sua ligação à geodiversidade, foi já abordado, de diversas perspetivas, por vários autores[73], [74], [75], [76], [77].


Valores evidenciados: Valor económico da geodiversidade (recursos geológicos, material de construção), cultural (importância da calçada no urbanismo de Lisboa), estético e de identidade local (a beleza da calçada artística e a sua candidatura a Património Cultural Imaterial Nacional).

Ligação aos vários conteúdos: Recursos geológicos e sua gestão (a sobreexploração em pedreiras), rochas sedimentares e ígneas, identificação prática de rochas, etc..

Interação com outras disciplinas: Os padrões da calçada como inspiração artística (EV, EVT) e como elemento de estudo da simetria (EV, EVT e Matemática). Também para o 1º Ciclo do Ensino Básico tem inúmeras potencialidades, nomeadamente, para Estudo do Meio, nos conteúdos do “Meio onde vivemos”, onde são abordados os materiais e as matérias- primas minerais.


Os fósseis locais e os exóticos no Terreiro do Paço

Sendo o calcário liós uma rocha ornamental fossilífera extensivamente empregue no Terreiro do Paço, nos seus edifícios e monumentos (FIGURAS 3A) e B)), os fósseis presentes nele (os de rudistas, mas não só) são abundantes (FIGURA 9). Os rudistas são um grupo de bivalves que surgiu no Jurássico Superior, há cerca de 160 milhões de anos (Ma), diversificou-se e floresceu durante todo o Cretácico e se extinguiu no final do Mesozóico, há 66 Ma, vitimado pelo mesmo evento de extinção em massa que dizimou os dinossáurios não-avianos[78].

Os rudistas viviam em ambientes marinhos de plataforma carbonatada, de águas quentes, tropicais, pouco profundos, onde se verificava a formação quimiogénica de vasa (lama) carbonatada, vasa essa que, após litificação, originou os calcários em que atualmente os fósseis ocorrem[79]. Os rudistas, ocorrendo em grande número (basta ver a quantidade dos seus fósseis no liós) originavam estruturas biogénicas, bioedificadas, recifes, ainda que com estrutura diferente da dos atuais recifes de corais.


FIGURA 9. Fósseis de bivalves rudistas em calcário liós em pavimentos do Terreiro do Paço. A) Somatofósseis de conchas cónicas de rudistas radiolitídeos (género Sauvagesia) em liós avermelhado. 1. Corte longitudinal do fóssil da concha, seccionando ambas as valvas (apresentando secção subtriangular). 2. Cortes transversais da valva inferior ou fixa (secção circular, apresentando a cavidade interior da concha preenchida por calcário no centro). B) Somatofósseis de conchas de rudistas caprinídeos (Caprinula) em liós bege. 1. Corte tangencial da valva livre, espiralada, da concha, evidenciando a sua estrutura alveolar. 2. Cortes transversais a oblíquos variados da valva livre da concha (contorno mais elíptico a reniforme). 3. Corte longitudinal da valva livre apresentando contorno mais espiralado. A tracejado, a orientação aproximada dos cortes. (Fotos dos autores).

Estas bioedificações de rudistas desenvolviam-se na zona de confluência entre os ambientes de laguna marinha, pouco profundos, situados entre terra firme e o tardoz do recife, por um lado, e os de mar aberto, mais profundos, pelo outro. Em meados do Cretácico, os rudistas suplantaram largamente os corais como construtores de recifes nas margens do Oceano Tétis, localizado entre a Eurásia e a América do Norte, a norte, e a América do Sul e a África, a sul, como se pode constatar, por exemplo, pela quase ausência de fósseis de corais, nomeadamente de corais coloniais, no liós.

Um dos grupos de invertebrados marinhos bentónicos (i.e., habitando o fundo) com esqueleto biomineralizado mais comuns nos ambientes de laguna marinha contemporâneos dos recifes de rudistas era o dos gastrópodes Nerinea s.l. (FIGURA 10A)). Estes gastrópodes, atualmente atribuíveis a vários géneros distintos, tinham em comum a presença de pregas (com contorno apresentando maior ou menor complexidade, consoante os géneros) no interior das voltas da concha. Este aspeto está bem patente nos seus fósseis ( FIGURA 10A) 1.).

Nos ambientes de plataforma carbonatada cretácicos viviam outros organismos que deixaram vestígios fossilizados, não sob a forma de fósseis de elementos esqueléticos (de somatofósseis), mas sim como evidências de atividade orgânica (de icnofósseis). É o caso das galerias fossilizadas atribuíveis ao icnogénero (i.e., ao género de icnofósseis) Thalassinoides[80] que se vêem em algumas das lajes do pavimento do Cais das Colunas. Estas galerias cilíndricas, com diâmetro variável, caracterizadas, entre outros aspetos, por apresentarem ramificação em T ou Y, segundo ângulos de aproximadamente 90o a 120o, são o resultado da atividade escavadora de, sobretudo, crustáceos decápodes da família Callianassidae e, frequentemente, apresentam um preenchimento algo distinto (na cor ou na litologia) da rocha em que ocorrem (FIGURA 10C)).


FIGURA 10. Fósseis (somatofósseis e icnofósseis) urbanos no Terreiro do Paço. A) Somatofósseis de gastrópodes do grupo Nerinea s.l. em calcário cretácico Amarelo de Negrais da região de Sintra (em superfície molhada). 1. Corte longitudinal, axial (coincidente com o eixo de enrolamento), do fóssil da concha, vendo-se as características pregas no interior das voltas da concha. 2. Corte transversal de uma concha similar e 3. Corte oblíquo. B) Somatofóssil de cefalópode nautiloide ordovícico em calcário de Öland, Suécia, em corte longitudinal. 1. Habitáculo da concha. 2. Fragmocone da concha. 3. Sifúnculo subcentral no interior da concha e 4. Septos pró-célicos (i.e., com a concavidade dirigida para diante, para o habitáculo). C) Icnofósseis de galerias de crustáceos decápodes (Callianassidae) atribuíveis ao icnogénero Thalassinoides em calcários do Cretácico Inferior da região de Lisboa (com coloração ocre, em superfície molhada) 1. Bifurcação em Y dos túneis característica deste icnogénero. Notar que o sedimento da matriz e do preenchimento da galeria são distintos. (Fotos dos autores).

Na construção do Terreiro do Paço não foram usadas apenas rochas nacionais. Uma muito característica, exótica, facilmente reconhecível pelo seu conteúdo fóssil é o calcário ordovício de Öland (Suécia)[81]. Este calcário, exportado em larga escala para toda a Europa, sobretudo para a Europa do Norte, desde a Idade Média, é reconhecível, entre outras características, por presentar fósseis de cefalópodes nautiloides do grupo Orthoceras s.l. (FIGURA 10B)).

Não são conhecidos fósseis de Orthoceras do registo fóssil nacional com este tipo de preservação, como mineralizações das conchas em calcários, somente como moldes em xistos argilosos, o que torna esta rocha facilmente reconhecível. No pavimento sob as arcadas do lado Nascente da praça podem encontrar-se algumas lajes de calcário de Öland, com cores mais acinzentadas a avermelhadas que as restantes, ostentado vários destes fósseis. A conservação dos exemplares permite identificar os principais elementos da concha destes cefalópodes nautiloides com concha rectilínea, ortocónica (FIGURA 11), parentes muito afastados do Nautilus e do Allonautilus da atualidade. O calcário de Öland foi empregue em pavimentos de outros edifícios em Lisboa, nomeadamente no coro-alto da Igreja do Mosteiro dos Jerónimos e em algumas das capelas da Igreja de São Mamede.

A título de curiosidade, refira-se que o túmulo do naturalista Carl von Linné (Carlos Lineu), na catedral de Uppsala, na Suécia, está coberto por lajes deste mesmo calcário, ostentando vários fósseis de Orthoceras[82].


FIGURA 11. Morfologia básica da concha de um nautiloide ortocónico paleozóico, Orthoceras. (Ilustração de Orthoceras em corte de CMS).

Valores evidenciados: Valor científico da geodiversidade (estudo das rochas e dos fósseis), cultural (importância do liós e dos seus fósseis na história e urbanismo de Lisboa), de identidade local (os fósseis de rudistas no liós e o aspeto da cidade) e de inspiração artística (o padrão dos rudistas do liós em azulejos e em pintura de fingimento).

Ligação aos vários conteúdos: Aplicação de conhecimentos adquiridos, rochas sedimentares, fósseis, somatofósseis e icnofósseis, paleoambientes (reconstituição dos paleoambientes em que viveram os grupos biológicos registados), alterações climáticas globais, tempo geológico, etc..

Sugestão de atividades: Busca, identificação e inventário dos fósseis urbanos da escola, ou da rua onde os alunos habitam; realização de páginas web, exposições e de folhetos de divulgação com o material identificado[83], [84], [85], [86], [87].

Interação com outras disciplinas: Integração da Geologia e da Biologia, os fósseis - entidades geológicas - como fonte de informação sobre a biodiversidade do passado e como registo palpável, real, de grupos biológicos extintos (Biologia). Os fósseis como fonte de inspiração em artes decorativas, fachadas de azulejos (EVT) e os cortes dos fósseis à superfície da rocha como elementos de interpretação de formas geométricas (EVT, Geometria Descritiva, Matemática).


A geodiversidade como geradora de identidade local

Tomando a capital de Portugal como exemplo, o que torna Lisboa…, Lisboa? A pergunta pode parecer absurda, mas o certo é que algo existe na cidade, em qualquer cidade, claro, que a torna reconhecível e distinta das demais. E muito do que torna a capital de Portugal uma cidade única, à sua maneira, são os aspetos da geodiversidade - direta ou indiretamente - com ela relacionados. Outro elemento marcante são as suas gentes, as pessoas - o seu temperamento, a sua diversidade, etc. - que compõem o miolo humano da urbe e os traços culturais culturais delas resultante (urbanismo, edifícios notáveis, gastronomia, folclore, etc.). Há mais aspetos a ter em conta, claro.

De um ponto de vista geológico, desde logo a sua localização (geográfica, resultante do contexto e da história geológica regional) junto ao estuário e à foz do Rio Tejo que lhe valeu o epíteto de “Lisboa, mãe de marinheiros”. A ninguém ocorreria atribuir essa designação a Évora, por exemplo, não obstante todas as magníficas qualidades da cidade alentejana Património Mundial UNESCO. Depois, continuando com os aspetos da geodiversidade local, sendo a “Cidade das Sete Colinas”, as colinas, reflexo da topografia condicionada pela estrutura geológica subjacente.

O liós é outro aspeto marcante. Não só é uma rocha que, pelas suas cores e qualidades de material de construção moldou diretamente o aspeto da cidade, mas também porque, sendo uma rocha de aparato, foi fonte de inspiração para outro elemento marcante de Lisboa: as suas fachadas de azulejos. Na Baixa de Lisboa e um pouco por toda a cidade são vários os exemplos da geodiversidade como fonte de inspiração de artes decorativas, servindo de base para os “Azulejos de Rudistas”[88], [89] de Lisboa (FIGURA 12). O liós marca ainda presença em interiores de variados edifícios da cidade, representado em pintura de fingimento, quer em igrejas, quer em edifícios nobres, e até nas paredes de casas de habitação mais antigas (neste último caso, escondidos do olhar do público).

A calçada portuguesa, já referida, candidata a Património Cultural Imaterial Nacional, outro traço característico de Lisboa, é mais um elemento de fusão da geodiversidade com a cultural local.


FIGURA 12. A importância cultural da geodiversidade, neste caso do liós, em Lisboa, traduzindo-se em elemento de identidade local. A) Pintura de fingimento mimetizando liós com rudistas no interior da Brotéria, Centro Cultural dos Jesuítas de Lisboa. B) Fachada de azulejos no Nº 233 da Rua da Rosa imitando liós com fósseis rudistas radiolitídeos (as setas assinalam a representação de alguns rudistas). C) Pormenor da pintura “São Vicente atado à coluna”, de Nuno Gonçalves (patente no MNAA em Lisboa), mostrando o que parece ser o pavimento de liós com fósseis de rudistas (as setas assinalam alguns rudistas). (Fotos dos autores).

Todos estes elementos, todos estes valores da geodiversidade local, se fundem - nomeadamente com aspetos biológicos, culturais e sociológicos - tornando Lisboa uma cidade singular (tal como todas as outras o são, à sua maneira) e gerando nos seus habitantes um sentimento de pertença à sua cidade, fortemente enraizado - para usar uma metáfora biológica integradora - nos aspetos abióticos do contexto local. Sem geodiversidade, não existiria Lisboa, nem o sentimento de pertença, de identidade local, experimentado pelas suas comunidades[90]. A geodiversidade natural tem um valor científico e pedagógico óbvio, imediatamente incorporável no ensino. Contudo, a geodiversidade urbana, pela sua ligação ao meio quotidiano das comunidades que com ela convivem, tem também (fundamental de um ponto de vista pedagógico) uma vertente cultural, societal e de geração de sentimento de pertença, com implicações e aplicações muito positivas, por exemplo, em atividades de inclusão e de promoção de autoestima coletiva de comunidades locais[91].


Conclusão

Tal como salientado por Gray na sua obra basilar Geodiversity: Valuing and Conserving Abiotic Nature um dos valores fundamentais da natureza abiótica é o valor educativo. Ao longo deste trabalho, procurou demonstrar-se a utilidade e a relevância pedagógica, bem como o alcance multidisciplinar daqueles aspetos da geodiversidade expressos - dos mais variados modos - em contexto citadino. A geodiversidade urbana e as atividades com ela relacionadas, que a mobilizem, são pertinentes para vários conteúdos programáticos, dos conceptuais aos atitudinais, passando pelos procedimentais, quer no ensino da Geologia, quer de tópicos concretos da Biologia, no Ensino Básico e Secundário nacional. Por fim, mas não menos importante, o emprego ativo do conceito de geodiversidade no ensino, em articulação com o de biodiversidade, colocando a tónica na diversidade (seja ela qual for) como elemento fundamental a ter em conta e a defender[92] é fundamental para a promoção de uma visão integrada e una da natureza do planeta Terra.


Agradecimentos

Os autores agradecem encarecidamente a Sérgio Horta (Wikipedia Commons) a sua excelente representação do brasão da cidade de Almada apresentado na FIGURA 5 deste trabalho.

[editar] Referências

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Criada em 24 de Abril de 2021
Revista em 26 de Abril de 2021
Aceite pelo editor em 15 de Outubro de 2021