A dáfnia como sensor da ecotoxidade

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Referência : Ribeiro, O. M., Pinto, M. Q., Ribeiro, C., Tiritan, M. E., Carrola, J. S., (2021) A dáfnia como sensor da ecotoxidade, Rev. Ciência Elem., V9(2):044
Autor: Ondina Martins Ribeiro, Mónica Quelhas Pinto, Cláudia Ribeiro, Maria Elizabeth Tiritan e João Soares Carrola
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2021.044]
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Resumo

A libertação de contaminantes para o meio ambiente tem aumentado nas últimas décadas, incluindo os produtos farmacêuticos e seus metabólitos. Podem chegar ao meio ambiente por várias vias e afetar as cadeias tróficas aquáticas e terrestres, mas também a saúde pública. Os efeitos destes compostos associados à exposição aguda e/ou crónica de organismos aquáticos ainda não são bem conhecidos. Desta forma, torna-se importante realizar estudos de ecotoxicologia usando diversos organismos, como peixes ou dáfnias. Os efeitos podem ser avaliados na dáfnia a vários níveis: bioquímica, imobilização, bioacumulação e reprodução. A sensibilização da população e da indústria para gestão adequada do uso e da eliminação dos medicamentos é fundamental para redução da poluição.




O impacto causado pela entrada de contaminantes emergentes, como os produtos farmacêuticos, nos ecossistemas aquáticos ainda é pouco conhecido devido à reduzida informação relativa à ecotoxicidade, biodegradação e destino dos fármacos[1]. O uso (e abuso) de medicamentos na medicina humana e veterinária contribui cada vez mais para a entrada de fármacos ou dos seus metabolitos nos ecossistemas aquáticos. Estes compostos chegam por várias vias, nomeadamente devido à excreção na urina dos pacientes e animais[2], eliminação voluntária de medicamentos fora de prazo ou não utilizados na sanita[3] (ou lixo) ou ainda a eliminação involuntária pela indústria farmacêutica[4]. Os resíduos de numerosos medicamentos (anti-inflamatórios, beta-bloqueadores, inibidores seletivos da recaptação de serotonina, antifúngicos do grupo dos azóis, antibióticos e outros) chegam posteriormente aos afluentes das estações de tratamento de águas residuais (ETAR). No entanto, mesmo funcionando corretamente estas infra- -estruturas não são completamente eficientes na remoção da maioria dos micropoluentes, incluindo os fármacos. Estes resíduos podem poluir os cursos de água originando misturas complexas de contaminantes que podem provocar efeitos diversos nos organismos aquáticos[5], [6].

Sendo assim, torna-se importante avaliar os efeitos dos produtos farmacêuticos e/o ou seus metabolitos, a curto e médio prazo nos organismos aquáticos, bem como na saúde humana. Numerosos compostos provocam efeitos nos sistemas biológicos, incluindo o sistema endócrino mesmo quando presentes em baixas concentrações, principalmente em situações de exposição crónica[7].

Desta forma, os estudos de ecotoxicologia aquática procuram perceber quais as possíveis respostas reais dos tóxicos ao longo das cadeias tróficas, de maneira a avaliar o impacto da ocorrência dos tóxicos nos vários ecossistemas. Estes dados tornam-se importantes para que as autoridades reguladoras competentes implementem medidas de mitigação adequadas[8], [9], [10].

Para a avaliação dos efeitos dos fármacos e seus metabólitos é desejável utilizar várias abordagens, como os testes in silico, in vitro e in vivo (FIGURA 1). Os testes in silico baseiam-se em técnicas computacionais que permitem estimar a toxicidade potencial das moléculas, por comparação, usando bases de dados extensas[11]. Os testes in vitro recorrem a estudos com células, tecidos ou órgãos em condições controladas em laboratório. Os testes in vivo requerem a utilização de organismos vivos que sejam adequados ao tipo de estudo, existindo numerosos testes padronizados que podem ser implementados[12].


FIGURA 1. Esquema que representa as diferentes abordagens que podem ser utilizadas para estimar ou avaliar os efeitos ecotoxicológicos: estudos in silico usando técnicas computacionais; in vitro usando culturas de células ou embriões transparentes de peixe-zebra, e técnicas in vivo usando diversos organismos vivos como a minhoca, a dáfnia, o peixe-zebra e roedores.

A dáfnia tem sido muito usada como organismo modelo na ecotoxicologia[13] devido à sua importância na cadeia alimentar e por ser uma espécie sentinela, bioindicador de perturbações nos ecossistemas aquáticos[14]. Existem também alguns estudos que utilizam dáfnias “contaminadas” para alimentar peixes, e desta forma avaliar as taxas de transferências dos tóxicos nas cadeias alimentares, desde metais pesados até plásticos.


Biologia da dáfnia

A dáfnia é um microcrustáceo planctónico, com cerca de 5 mm de comprimento, e vive em ecossistemas aquáticos lênticos de água doce preferindo temperaturas entre os 18 e 22 oC[15].

Tem um exoesqueleto transparente composto por quitina, que cobre todo o corpo à exceção da cabeça[16]. Possui dois pares de antenas – as primeiras como órgão sensorial e as segundas como órgão de natação[17], um par de olhos compostos, com a presença de omatídios para a deteção da luz[18] e ainda um pequeno olho simples, chamado ocelo (FIGURA 2).

Também é visível a presença de 4 a 6 pares de membros torácicos, que intervêm juntamente com as antenas na respiração e na alimentação[19]. Na natureza, as dáfnias alimentam-se essencialmente de microalgas, bactérias[20] e detritos orgânicos em suspensão ou depositados no fundo da água[21].


FIGURA 2. A) Microfotografia de uma dáfnia adulta fêmea. Nesta imagem podemos observar alguns ovos dentro da câmara de incubação. B) Esquema da anatomia e morfologia de uma dáfnia.

Ciclo de vida e reprodução

Este microcrustáceo pode reproduzir-se tanto sexuada ou como assexuadamente (partenogénese cíclica), dependendo das condições externas - alimentares e ambientais (FIGURA 3).

Sob condições favoráveis as dáfnias reproduzem-se de forma assexuada, levando à produção de ovos diploides, originando filhas geneticamente idênticas (clones). Este tipo de reprodução é importante em estudos ecotoxicológicos para diminuir a variabilidade dos resultados[22].

Sob condições adversas as fêmeas reproduzem-se de forma sexuada, produzindo machos de forma assexuada que vão posteriormente fertilizar os ovos em diapausa internamente[23]. Estes ovos dão origem a ovos haploides fertilizados que não se desenvolvem, ficando num estado de repouso – efípias ou ovos de resistência[24], que são resistentes a condições adversas devido a uma membrana protetora. Quando as condições ambientais se tornam favoráveis à espécie, os ovos de resistência podem eclodir dando origem aos juvenis[25].


FIGURA 3. Esquema do ciclo reprodutivo da dáfnia, mostrando a fase sexuada e assexuada. A reprodução assexuada ocorre quando as condições ambientais são favoráveis e originam fêmeas geneticamente iguais às progenitoras. A reprodução sexuada ocorre em condições ambientais desfavoráveis e ocorre a produção de machos e fêmeas (maior variabilidade genética).

Os juvenis podem sofrer entre 3 a 5 ecdises (libertação do exosqueleto) até à sua maturação, sendo que esta fase é marcada pela primeira postura dos ovos na câmara de incubação[26]. Durante a fase de adolescente ocorre a maturação dos ovos, e posteriormente entram na fase adulta após 10 a 13 dias de vida.


A dáfnia como organismo modeloOs efeitos e os modos de ação de produtos farmacêuticos sob as espécies aquáticas ainda não são totalmente compreendidos, sendo preocupantes uma vez que mesmo em baixas concentrações os compostos podem exercer efeitos prejudiciais nos organismos não-alvo. A dáfnia tem sido muito utilizada como modelo animal em estudos de toxicologia aquática e também noutras outras áreas como a ecologia, devido às suas várias vantagens: elevada sensibilidade a contaminantes, grande relevância ecológica, facilidade de manuseio e manutenção, um ciclo de vida curto, o tipo de reprodução, entre outras[27].

Para avaliar a toxicidade de contaminantes, incluindo os fármacos, existem diversos protocolos padronizados e que foram desenvolvidos por organizações internacionais, nomeadamente a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a Organização Internacional de Padronização (ISO), de maneira a normalizar os ensaios a realizar em diferentes laboratórios.

No caso da dáfnia, para se poder avaliar os efeitos causados por uma exposição aguda (24 e 48 horas) podemos implementar o teste nº202 da OCDE. Este teste visa estimar a percentagem de imobilização da dáfnia em comparação com os grupos controlo[28]. Para a avaliação dos efeitos causados por uma exposição crónica (21 dias), utiliza-se o teste nº 211 da OCDE, para avaliar os efeitos na reprodução dos animais expostos a determinado químico[29].

Muitos estudos têm sido realizados para avaliar os efeitos de vários tipos de fármacos na imobilização da dáfnia[30], [31] na reprodução[32], [33] no comportamento[34], [35] e até ao nível bioquímico[36].

Apesar da dáfnia não ser um organismo protegido pela legislação relacionada com a ética e bem-estar animal, na realização de ensaios científicos devem ser sempre consideradas as questões de ética. Por exemplo, tentar reduzir o número de animais utilizados sem que coloque em risco a validade do estudo ou no final de um ensaio colocar os animais do grupo controlo de novo no meio de cultura, ou então utilizar estes animais para fins pedagógicos ou de educação ambiental minimizando sempre que possível o número de invertebrados mortos.

A dáfnia desempenha um papel fundamental em termos ecológicos, como elemento da base das redes alimentares e a sua presença/ausência pode dar informações valiosas sobre a perturbação dos ecossistemas aquáticos. Apesar de ser um organismo de reduzida dimensão tem sido muito utilizado como organismo modelo em numerosas diretrizes de organizações internacionais para estudar os efeitos ecotoxicológicos de numerosas substâncias, incluindo os resíduos de fármacos.

Referências

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Criada em 8 de Setembro de 2020
Revista em 16 de Setembro de 2020
Aceite pelo editor em 15 de Junho de 2021