Equações cúbicas e números complexos

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Referência : Santos, J. C, (2023) Equações cúbicas e números complexos, Rev. Ciência Elem., V11(3):031
Autora: José Carlos Santos
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2023.031]
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[editar] Resumo

É geralmente referido nos livros de Matemática destinados a alunos do 12.º ano que a origem dos números complexos está ligada à resolução das equações de terceiro grau e à fórmula de Cardano. Este artigo explora as ligações entre os dois tópicos. E há muitas.


Os alunos do 12.º ano aprendem a trabalhar com números complexos. É frequente que se explique neste contexto o que é a fórmula de Cardano (que será exposta mais à frente) e que se diga como pode levar a números complexos não reais, mesmo que a equação só tenha coeficientes reais e que só se esteja interessado em soluções reais. E há um exemplo que é mencionado praticamente sempre: a equação \(x^3-15x-4=0\). Historicamente, isto faz sentido, pois este mesmo exemplo já surge no primeiro livro dedicado a este tópico: L’Algebra, de Rafael Bombelli. Este será o ponto de partida para este artigo. Iremos ver o que diz a fórmula de Cardano, o que é que há de especial (se é que há) relativamente à equação atrás referida e outros tópicos relacionados.


As equações cúbicas até Bombelli.

Resolver equações quadráticas é algo que já se sabia fazer na Mesopotâmia, na primeira metade do segundo milénio a.C.[1]. Como iremos ver, resolver equações cúbicas é algo bastante mais complexo. A primeira pessoa a conseguir um método para resolver todas as equações cúbicas foi Omar Caiam[2], um poeta, matemático e astrónomo persa que publicou um livro sobre o assunto no fim do século XI. O método aí exposto, que se baseava numa ideia de Arquimedes, envolvia o uso de Geometria (mais precisamente, interseção de cónicas) para resolver aquelas equações. Aparentemente, Omar Caiam ficou frustrado por o seu método não ser puramente algébrico, pois escreveu:


“Quando, no entanto, o objeto de estudo do problema é um número puro, nem nós nem nenhuma pessoa dedicada à Álgebra foi capaz de resolver esta equação. Talvez outros que virão depois de nós venham a ser capazes de colmatar esta lacuna.”.


Não se vai aqui expor em detalhe a história tortuosa de como surgiu, na Itália do século XVI, um processo algébrico de resolver equações cúbicas[3], [4]. A chamada fórmula de Cardano consiste numa fórmula para obter uma solução da equação \(x^3+px+q=0\), que nos diz que uma tal solução é dada por


\(\sqrt[3]{-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}}+\sqrt[3]{-\frac{q}{2}-\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}}\) (1)


e surge no livro Ars Magna, publicado por Cardano, em 1545.

Um aspeto do que acabou de ser escrito que salta imediatamente aos olhos é que a fórmula (1) só nos permite resolver equações cúbicas de um tipo muito restrito. De que é que serve aquela fórmula se se quiser resolver, por exemplo, a equação \(2x^3+x^2+x-1=0\)? Afinal, não é da forma \(x^3+px+q=0\). O próprio Cardano explica, no Ars Magna, como lidar com este problema. O primeiro passo consiste em dividir a equação anterior pelo coeficiente de \(x^3\), que é 2, o que dá origem à equação


\(x^3+\frac{1}{2}x^2+\frac{1}{2}x-\frac{1}{2}=0\) (2)


Claramente, as duas equações são equivalentes, ou seja, têm as mesmas soluções. O passo seguinte consiste em introduzir uma nova incógnita, \(y\), e substituir, na equação anterior, \(x\) por \(y − 1/6\). Acontece que


\(\left ( y-\frac{1}{6} \right )^3+\frac{1}{2}\left ( y-\frac{1}{6} \right )^2+\frac{1}{2}\left ( y-\frac{1}{6} \right )-\frac{1}{2}=y^3+\frac{5}{12}y-\frac{31}{54}\)


E, agora sim, pode-se aplicar a fórmula de Cardano. Temos


\(p=\frac{5}{12},q=-\frac{31}{54}\) e \(\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}=\sqrt{\frac{49}{576}}=\frac{7}{24}\)


Logo, a fórmula de Cardano diz-nos que uma solução da equação


\(y^3+\frac{5}{12}y-\frac{31}{54}=0\) (3)


é


\(y=\sqrt[3]{\frac{31}{108}+\frac{7}{24}}+\sqrt[3]{\frac{31}{108}-\frac{7}{24}}=\frac{5}{6}-\frac{1}{6}=\frac{2}{3}\)


Finalmente, tem-se \(x = y − 1/6 = 2/3 − 1/6 = 1/2\).

Só falta explicar um detalhe: porquê tomar \(x = y − 1/6\)? De onde vem aquele \(1/6\)? Vem do facto de o coeficiente de \(x^2\) na equação (2) ser \(1/2\). A regra geral é a seguinte: se se tem uma equação cúbica do tipo \(x^3 + ax^2 + bx + c = 0\) e se se fizer a substituição \(x = y − a/3\), obtém-se uma equação do tipo \(y^3 + py + q = 0\). Em particular, se \(a = 1/2\), faz-se \(x = y − 1/6\).

Está então visto como a fórmula de Cardano permite, de facto, resolver qualquer equação cúbica. Acontece que não é bem assim. Como Cardano se apercebeu, surge um problema quando \(q^2/4 + p^3/27 <\) \(0\). Quando isto tem lugar, a fórmula não faz sentido. Ou, pelo menos, não fazia sentido da primeira vez que Cardano se deparou com o problema.

É no Ars Magna que os números complexos surgem pela primeira vez. No entanto, não são mencionados no contexto das equações cúbicas. Surgem pela primeira vez perto do fim do livro, quando Cardano menciona o problema de encontrar dois números cuja soma seja 10 e o produto 40 e dá como solução os números \(5+\sqrt{-15}\) e \(5-\sqrt{-15}\). Mas menciona em seguida a “tortura mental” que consiste em trabalhar com tais números e acaba por dizer que são “tão subtis quanto inúteis”.

Quem atacou de frente o problema de usar a fórmula de Cardano em todos os casos, e não apenas quando \(q^2/4 + p^3/27 \geq0\) foi um contemporâneo e admirador de Cardano, Rafael Bombelli. No seu livro L’Algebra, ele provou que qualquer equação cúbica tem alguma solução[5]. Logo, quem pensasse que, por analogia com o que acontece com a fórmula resolvente das equações quadráticas, o facto de se ter \(q^2/4 + p^3/27 <\) \(0\) seria uma indicação de ausência de soluções estaria enganado. E é também naquele livro que surge a famosa equação cúbica \(x^3− 15x −4 = 0\). Bombelli faz notar que, como facilmente se pode verificar, 4 é solução desta equação. Mas se a tentarmos resolver usando a fórmula de Cardano, obtemos


\(x=\sqrt[3]{2+\sqrt{-121}}+\sqrt[3]{2-\sqrt{2-\sqrt{-121}}}\)


Bombelli aproveita o facto de se ter \(121 = 11^2\) para escrever a expressão anterior sob a forma


\(x=\sqrt[3]{2+11\sqrt{-1}}+\sqrt[3]{2-11\sqrt{-1}}\)


Em seguida, observa que


\(\begin{matrix} \left ( 2+\sqrt{-1} \right )^3 & = & 2^2+3\times 2^2\times\sqrt{-1}+3\times 2\times\sqrt{-1}^2+\sqrt{-1}^3\\ & = & 8+12\sqrt{-1}-6-\sqrt{-1}\\ & = & 2+11\sqrt{-1} \end{matrix}\)


e um cálculo análogo mostra que \(\left ( 2-\sqrt{-1} \right )^3=2-11\sqrt{-1}\). Logo, afirma Bombelli,


\(x=\sqrt[3]{2+11\sqrt{-1}}+x=\sqrt[3]{2-11\sqrt{-1}}=2+\sqrt{-1}+2-\sqrt{-1}=4\)


Cúbicas de Bombelli.

Este exemplo é excelente, do ponto de vista pedagógico, para explicar como surgiram os números complexos. Os cálculos são fáceis de levar a cabo e permitem ver como obter a solução que já se sabe que existe. Mas haverá mais exemplos deste tipo? Vamos clarificar o que é que se entende por “este tipo”.

Para começar, observe-se que a fórmula de Cardano pode ser reescrita sob a forma


\(x=\sqrt[3]{-\frac{q}{2}+\sqrt{\left ( \frac{q}{2} \right )^2+\left ( \frac{p}{3} \right )^2}}+\sqrt[3]{-\frac{q}{2}-\sqrt{\left ( \frac{q}{2} \right )^2+\left ( \frac{p}{3} \right )^2}}\)


Logo, se quisermos trabalhar o mais possível com números inteiros, convém que \(p\) seja um inteiro múltiplo de 3 e que \(q\) seja um inteiro par (no exemplo de Bombelli é o que acontece, pois \(p = −15\) e \(q = −4\)). Em segundo lugar, pretende-se que \(q^2/4 + p^3/27\) seja da forma \(−n^2\), para algum inteiro \(n > 0\) (no exemplo de Bombelli, \(q^2/4 + p^3/27 = −11^2\)). Também é razoável ter-se q ̸= 0; não há nada de errado, do ponto de vista lógico, em aplicar a fórmula de Cardano com \(q\neq 0\), mas nesse caso é óbvio que \(0\) é solução da equação, pelo que este caso não tem interesse. Finalmente, pretende-se que cada um dos números \(−q/2 + ni\) e \(−q/2 − ni\) seja da forma \(\left ( a+bi \right )^3\) para dois inteiros \(a\) e \(b\) (no exemplo de Bombelli, temos \(2 + i\) e \(2 − i\)). Vamos chamar cúbica de Bombelli a uma equação cúbica que satisfaça todas estas condições.

Há outras cúbicas de Bombelli além do exemplo já visto? Sim, e é muito fácil perceber o motivo. Basta tomar a equação cúbica \(x^3− 15x + 4 = 0\), pois \(−4\) é solução desta equação e cálculos análogos aos anteriores levam a esta solução, que é então obtida como


\(\sqrt[3]{-2+11i}+\sqrt[3]{-1-11i}=-2+i-2-i\)


Mais geralmente, se \(x^3 + px + q = 0\) for uma cúbica de Bombelli, \(x^3 + px − q = 0\) também o é.

Há cúbicas de Bombelli diferentes daquelas que já vimos? Sim, há uma infinidade delas e o exemplo de Bombelli nem sequer é o que envolve números mais próximos de 0. Considere-se a equação \(x^3− 6x −4 = 0\). Neste caso, \(q^2/4 + p^3/27 = −4\). Além disso,


\(-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}=2+2i=\left ( -1+i \right )^3\)


e


\(-\frac{q}{2}-\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}=2-2i=\left ( -1-i \right )^3\)


pelo que, neste caso, a fórmula de Cardano dá origem à raiz


\(\sqrt[3]{-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}}+\sqrt[3]{-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}}=-1+i-1-i=-2\)


Há uma maneira simples de obter todas as cúbicas de Bombelli. Tomam-se dois inteiros não nulos \(a\) e \(b\) e considera-se a equação cúbica


\(x^3-3\left ( a^2+b^2 \right )x-2\left ( a^3-3ab^2 \right )=0\) (4)


É sempre uma cúbica de Bombelli. Com \(a = 2\) e \(b = 1\), obtém-se aquela que vem no livro de Bombelli e, com \(a = −1\) e \(b = 1\), obtém-se \(x^3− 6x −4 = 0\). E, naturalmente, podemos criar assim uma infinidade de cúbicas de Bombelli.

Quanto ao motivo de (4) ser uma cúbica de Bombelli, basta ver que, neste caso, \(p=-3\left ( a^2+b^2 \right )\) (que é um inteiro múltiplo de 3) e \(q=-2\left ( a^3-3ab^2 \right )\) (que é um inteiro par). Além disso,


\(\begin{matrix} \frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27} & = & \left ( -a^3+3ab^2 \right )^2-\left ( a^2+b^2 \right )^3\\ & = & -9a^4b^2+6a^2b^4-b^6\\ & = & -\left ( 3a^2b-b^3 \right )^2 \end{matrix}\)


O termo constante do membro da esquerda de (4) não é \(0\) pois é igual a \(-2a\left ( a^2-3b^3 \right )\), que não é \(0\), uma vez que \(a\neq0\) e \(\sqrt{3}\) é irracional. Um argumento análogo mostra que \(3a^2b-b^3\neq0\). Então, neste caso, a fórmula de Cardano afirma que uma raiz da equação (4) é


\(\sqrt[3]{a^3-3ab^2+\left ( 3a^2b-b^3 \right )i}+\sqrt[3]{a^3-3ab^2-\left ( 3a^2b-b^3 \right )i}\) (5)


Mas \(a^3-3ab^2\pm \left ( 3a^2b-b^3 \right )i=\left ( a\pm bi \right )^3\) e, portanto, os números que estão dentro dos radicais de ambas as parcelas da soma (5) são da forma \(\left ( \alpha+\beta i \right )^3\), com \(\alpha\) e \(\beta\) inteiros. De facto, decorre do que foi visto que a raiz que se obtém neste caso é \(2a\), pois (5) é igual a \(a + bi + a − bi\).


A validade da fórmula de Cardano.

Voltemos à equação cúbica de Bombelli: \(x^3− 15x −4 = 0\). Já vimos que \(4\) é solução desta equação. Será que tem outras? Para determinar isso, podemos dividir \(x^3− 15x − 4\) por \(x − 4\); o resultado é \(x^2 + 4x + 1\). Então, uma vez que


\(x^3-15x-4=\left ( x-4 \right )\left ( x^2+4x+1 \right )\)


as soluções da equação \(x^2 + 4x + 1 = 0\) também são soluções da cúbica de que partimos. E aquela equação quadrática tem duas soluções: \(-2\pm\sqrt{3}\).

Uma questão natural a colocar aqui é a seguinte: porque é que a fórmula de Cardano nos dá a solução 4 mas não as outras duas? Acontece que esta pergunta parte de um pressuposto falso; com efeito, ao contrário do que poderá parecer, a fórmula de Cardano dá-nos todas as soluções. A fim de explicar porque é que assim é, é conveniente começar por ver porque é que a fórmula de Cardano é válida. Aquela fórmula é frequentemente apresentada sem qualquer justificação, mas até é simples de provar. Se, na expressão \(x^3 + px + q\), substituirmos \(x\) por \(u + v\), obtemos


\(u^3 + 3u^2v + 3uv^2 + v^3 + p (u + v) + q\)


Mas \(u^2v + uv^2 = uv (u + v)\) e, portanto, afirmar que a expressão anterior é igual a \(0\) é o mesmo que afirmar que


\(u^3+v^3+q\left ( u+v \right )\left ( 3uv+p \right )=0\) (6)


Para que isto tenha lugar, basta que se tenha \(u^3 + v^3 + q = 0\) e \(3uv + p = 0\). Mas se for este o caso, então


\(\left\{\begin{matrix} u^3+v^3=-q\\ u^3v^3=-p^3/27 \end{matrix}\right.\)


Este sistema de equações resolve-se facilmente. Se, na segunda equação, se substituir \(v^3\) por \(−u^3− q\), obtemos \(u^3\left ( -u^3-q \right )=-p^3/27\), o que equivale a afirmar que \(\left ( u^3 \right )^2+qu^3-p^3/27=0\). Logo,


\(u^3=-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}\) e \(v^3=-u^3-q=-\frac{q}{2}-\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}\)


ou,


\(u^3=-\frac{q}{2}-\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}\) e \(v^3=-u^3-q=-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}\)


Em qualquer dos casos,


\(u+v=\sqrt[3]{-\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}}+\sqrt[3]{-\frac{q}{2}-\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}}\)


Está então justificada a fórmula de Cardano. Mas esta fórmula tem um problema, que não tem nada a ver com o sinal da expressão \(q^2/4 + p^3/27\). O problema é o seguinte: cada número complexo diferente de \(0\) tem três raízes cúbicas. Logo, em geral, a fórmula de Cardano devia dar-nos nove soluções para a equação \(x^3 + px + q = 0\), a qual não pode ter mais do que três. Como é que isto pode ser?

Para compreender o que se está a passar, veja-se que a certa altura, ao deduzir-se a validade da fórmula, se tem \(3uv + p = 0\); no passo seguinte, esta igualdade é substituída por \(u^3v^3 = −p^3/27\). E, de facto, as igualdades são equivalentes se estivermos a trabalhar somente com números reais pois, nos reais, dois números são iguais se e só se os seus cubos são iguais. Mas isto não é verdade para os números complexos! Isto decorre do facto já referido segundo o qual cada número complexo diferente de 0 ter três raízes cúbicas. Por exemplo, as raízes cúbicas de \(1\) são as soluções da equação \(z^3−1 = 0\). Como \(z^3-1=\left ( z-1 \right )\left ( z^2+z+1 \right )\), as soluções daquela equação são, além do número \(1\), as raízes do polinómio \(z^2 + z + 1\), que são \(-1/2\pm\sqrt{3}i/2\). Seja \(\omega=-1/2+\sqrt{3}i/2\); então \(\omega^2=-1/2-\sqrt{3}i/2\). Assim sendo, as raízes cúbicas de \(1\) são \(1\), \(\omega\) e \(\omega^2\). Mais geralmente, se \(z\) for uma raiz cúbica de um número complexo \(\omega\), então as raízes cúbicas de \(\omega\) são \(z\), \(\omega z\) e \(\omega^2z\).

Decorre daqui que a fórmula de Cardano não deve ser interpretada literalmente; a ideia não é tomar qualquer raiz cúbica de \(-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) e somar-lhe qualquer raiz cúbica de \(-q/2-\sqrt{q^2/4+p^3/27}\). O que há a fazer é tomar uma raiz cúbica \(u\) de \(-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) e somar-lhe uma raiz cúbica \(v\) de \(-q/2-\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) tal que \(uv=-p/3\). E é sempre possível fazer isto, pois se \(u\) for uma raiz cúbica de \(-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) e \(v\) for uma raiz cúbica de \(-q/2-\sqrt{q^2/4+p^3/27}\), então


\(\left ( uv \right )^3=u^3v^3=-\frac{p^3}{27}=\left ( -\frac{p}{3} \right )^3\)


e, portanto, \(uv\) é um dos números \(−p/3\), \(−\omega p/3\) ou \(−\omega^2p/3\) e então

  • se \(uv = −p/3\), aquele \(u\) e aquele \(v\) servem;
  • se \(uv = − p/3\), basta substituir \(u\) por \(\omega u\) e \(v\) por \(\omega v\), pois


\(\left ( \omega u \right )\left ( \omega v \right )=-\frac{\omega^3p}{3}=-\frac{p}{3}\)


  • analogamente, se \(uv = −\omega^2p/3\), basta substituir \(u\) por \(\omega^2u\) e \(v\) por \(\omega^2v\).

Antes de prosseguir, convém responder a uma pergunta que provavelmente estará na cabeça de alguns leitores. Porquê toda esta confusão relativa a quais raízes cúbicas levar em conta? Afinal, a fórmula de Cardano já foi empregue repetidamente neste texto e não se teve nenhum cuidado especial com tais escolhas. De facto, e isto assim é por dois motivos. Da primeira vez que a fórmula da Cardano foi empregue, foi para resolver a equação (3). Neste caso, os números \(-q/2\pm\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) são ambos reais e, naturalmente, tomaram-se as suas raízes cúbicas reais \(u\) e \(v\). Mas então \(uv = −p/3\), pois \(uv\) é real e, portanto, não se pode ter \(uv = − p/3\) nem \(uv = −\omega^2p/3\). Em todos os restantes casos, o número \(-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) era um número complexo não real e \(-q/2-\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) era o seu conjugado. Mas se \(a\), \(b\), \(\alpha\) e \(\beta\) são números reais tais que \(\left ( \alpha+\beta i \right )^3=a+bi\), então \(\left ( \alpha+\beta i \right )^3=a-bi\). Então, uma vez escolhida uma raiz cúbica \(u\) de \(-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\), o que é natural fazer (e o que foi feito) foi tomar para \(v\) o conjugado de \(u\), o que tem como consequência que \(uv=u\bar{u}=\left | u \right |^2\), que é um número real. Logo, tal como no caso anterior, \(uv\) tem que ser igual a \(−p/3\), uma vez que \(−p/3\) é real. Isto explica porque é que, em todos os casos, o número dado pela fórmula de Cardano foi, de facto, uma solução da equação de que se partiu.

Mas agora convém fazer notar que, dada uma equação cúbica \(x^3 + px + q = 0\), se \(u\) e \(v\) forem raízes cúbicas de \(-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) e de \(-q/2-\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) respetivamente tais que \(uv = −p/3\), então o mesmo acontece com os números \(\omega u\) e \(\omega^2v\), bem como com os números \(\omega^2u\) e \(\omega v\). Logo, \(\omega u+\omega^2v\) e \(\omega^2u+\omega v\) também são soluções da equação dada. E isto justifica a afirmação que foi feita atrás segundo a qual a fórmula de Cardano dá todas as soluções da equação, pelo menos no caso da equação \(x^3− 15x −4 = 0\). Já vimos que, neste caso, podemos tomar \(u = 2 + i\) e \(v = 2− i\). Então a fórmula de Cardano dá, de facto, todas as soluções daquela equação: \(4\left ( =u+v \right )\), \(-2-\sqrt{3}\left ( =\omega u+\omega^2v \right )\) e \(-2+\sqrt{3}\left ( =\omega^2 u+\omega v \right )\).

Isto leva à seguinte questão: será que a fórmula de Cardano permite sempre obter todas as raízes da equação \(x^3 + px + q = 0\)? Isto não resulta automaticamente da dedução da validade da fórmula, pois esta dedução envolveu passar pela igualdade (6) e afirmar que, para que seja válida, é suficiente que cada parcela do membro da esquerda seja igual a 0. Mas para que uma soma de dois números seja \(0\) não é necessário que ambas as parcelas sejam nulas e isto abre a possibilidade de haver outras soluções além das que são dadas pela fórmula de Cardano.

Como vimos, a fórmula de Cardano fornece três soluções da equação dada. Se fornecer três soluções distintas então, visto que se trata de uma equação cúbica, não pode haver mais soluções. Falta então ver o que é que acontece quando as soluções não forem distintas.

Temos então uma equação do tipo \(x^3 + px + q = 0\) e temos dois números \(u\) e \(v\) tais que \(u^3=-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\), que \(v^3=-q/2+\sqrt{q^2/4+p^3/27}\) e que \(uv = −p/3\). A partir daqui, obtemos os três números \(u + v,  u + \omega^2v\) e \(\omega^2u + \omega v\). O que é que acontece se, por exemplo, \(\omega u + \omega^2v = \omega^2u + \omega v\)? Temos


\(\begin{matrix} \omega u+\omega^2v=\omega^2 u+\omega v & \Leftrightarrow & u+\omega v=\omega u+v\\ & \Leftrightarrow & \left ( 1-\omega \right )u=\left ( 1-\omega \right )v\\ & \Leftrightarrow & u=v \end{matrix}\)


Mas então as soluções da equação dadas pela fórmula de Cardano são


\(2u\left ( =u+v \right )\) e \(-u\left ( =\omega u+\omega^2v=\omega^2u+\omega v \right )\)


Por outro lado, veja-se que


\(\left ( x-2u \right )\left ( x+u \right )^2 = x^3-3u^2x-2u^3\)


\(=x^3-3uv-\left ( u^3+v^3 \right )\) (pois \(u=v\))


\(x^3+px+q\)


de onde decorre que \(2u\) e \(−u\) são as únicas soluções da equação dada.

Os restantes casos são análogos: se \(u + v = \omega u + \omega^2v\), então \(v = \omega u\) e as soluções dadas pela fórmula de Cardano são \(2\omega^2u\) e \(−\omega^2u\) e, se \(u + v = \omega^2u + \omega v\), então \(v = \omega^2u\) e as soluções dadas pela fórmula de Cardano são \(2\omega u\) e \(−\omega u\). E mostra-se como atrás que são as únicas soluções da equação. Estes cálculos levam a uma consequência interessante: tem-se


\(x^3+pxpq=0\) tem menos que 3 soluções \(\Leftrightarrow \)


\(\Leftrightarrow v=u\) ou \(v=\omega u\) ou \(v=\omega^2u\)


\(\Leftrightarrow u^3=v^3\)


\(\Leftrightarrow -\frac{q}{2}+\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}=-\frac{q}{2}-\sqrt{\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}}\)


\(\Leftrightarrow \frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}=0\)


Logo, o número \(q^2/4+p^3/27\), que é tão proeminente na fórmula de Cardano, é igual a 0 quando e só quando a equação cúbica que se está a resolver tiver menos do que três soluções. E pode-se provar (supondo que \(p\) e \(q\) são números reais) que é menor do que \(0\) quando a equação tiver três raízes reais e que é maior do que 0 quando tiver uma raiz real e duas raízes complexas não reais.

Para terminar, observe-se que é desnecessário usar a fórmula de Cardano quando \(q^2/4+p^3/27=0\). Podemos, é claro, usá-la; obtemos que as raízes são \(2\sqrt[3]{-q/2}\left ( =\sqrt[3]{-4q} \right )\) e \(\sqrt[3]{-q/2}\). Mas há uma resposta mais simples, que não envolve cálculo de raízes. Caso \(p = 0\), então, visto que \(q^2/4+p^3/27=0\), \(q = 0\). Logo, a equação em questão é somente \(x^3 = 0\), cuja única raiz é \(0\). Caso \(p\neq 0\), então


\(\frac{q^2}{4}+\frac{p^3}{27}=0\Leftrightarrow \frac{27q^2}{4p^3}=-1\)


Logo


\(\left ( \frac{3q}{2p} \right )^3=\frac{27q^3}{8p^3}=\frac{q}{2}\cdot\frac{27q^2}{4p^3}=-\frac{q}{2}\)


Então uma raiz cúbica de \(−q/2\) é \(3q/2p\). Aparentemente, pode-se então tomar \(u = v = 3q/2p\). Para confirmar que assim é, basta ver se se tem \(uv = −p/3\), mas tem-se isto de facto, pois


\(uv=\left ( \frac{3q}{2p} \right )^2=\frac{9q^2}{4p^2}=\frac{p}{3}\cdot\frac{27q^2}{4p^3}=-\frac{p}{3}\)


Logo, as raízes da equação \(x^3 + px + q = 0\) são, neste caso, \(3p/q\) e \(−3q/2p\). Em particular, se \(p\) e \(q\) forem números racionais, as raízes também são racionais.

[editar] Referências

  1. KATZ, V. J. & PARSHALL, K. H., Taming the unknown: A History of Algebra from Antiquity to Early Twentieth Century, Princeton University Press. 2014.
  2. KATZ, V. J. & PARSHALL, K. H., Taming the unknown: A History of Algebra from Antiquity to Early Twentieth Century, Princeton University Press. 2014.
  3. GINDIKIN, S. G., Tales of Physicists and Mathematicians, Birkhäuser. 1988.
  4. KATZ, V. J. & PARSHALL, K. H., Taming the unknown: A History of Algebra from Antiquity to Early Twentieth Century, Princeton University Press. 2014.
  5. LA NAVE, F. & MAZUR, B., Reading Bombelli, The Mathematical Intelligencer, 24, pp. 12–21. 2002.


Criada em 12 de Junho de 2023
Revista em 3 de Julho de 2023
Aceite pelo editor em 13 de Outubro de 2023