A gripe
Referência : Ponce, R., Nogueira, T., (2021) A gripe, Rev. Ciência Elem., V9(2):032
Autor: Rita Ponce e Teresa Nogueira
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2021.032]
[editar] Resumo
A gripe é uma doença respiratória infeciosa causada por vírus da família Orthomyxoviridae. É uma doença sazonal, mais frequente no outono e no inverno que se caracteriza por: mal-estar e cansaço, febre alta, dores musculares, articulares e de cabeça, tosse seca e inflamação dos olhos[1]. Ocasionalmente surgem epidemias de gripe devido ao facto de este vírus evoluir rapidamente e de se transmitir facilmente por via aérea através de gotículas, tornando a sua prevenção um desafio. O estudo dos surtos ao longo dos anos tem permitido o desenvolvimento de vacinas contra a gripe.
A gripe é uma infeção respiratória aguda que é causada por vírus influenza, também chamados vírus da gripe (FIGURA 1), mais frequente nos meses mais frios[2]. O termo português - gripe - deriva da palavra francesa grippe, agarrar com força, refletindo a forma brusca com que se manifestam os sintomas iniciais da doença. É pois uma doença sazonal e o nome da doença nos países anglo-saxónicos, influenza - que é também o nome do vírus que causa a gripe -, reflete esta sazonalidade. Influenza é uma palavra italiana e a doença foi assim chamada pois os médicos na idade média acreditavam que esta se devia a uma “influência” dos astrosa.
Quando um indivíduo infetado tosse ou espirra, milhões de partículas virais são lançadas no ambiente através de aerossóis que conseguem espalhar-se pelo ar e depositar-se em algumas superfícies. Os ambientes pouco ventilados promovem a persistência destas partículas no ar e a sua inalação por outros indivíduos. A infeção também se pode dar através do contacto com superfícies contaminadas. Deste modo, em ambientes potencialmente contaminados, é de especial relevância a lavagem frequente das mãos, bem como a ventilação destes espaços.
Quando as partículas virais atingem a mucosa das vias aéreas superiores, estas entram para o interior das células dando início ao ciclo de replicação no qual são produzidos muitos novos vírus descendentes, desencadeando-se o processo de disseminação que leva a que alguns vírus atinjam os pulmões[3]. Os primeiros sintomas da doença surgem nos primeiros quatro dias após a infeção pelo vírus (período de incubação). A gravidade da doença, no entanto, pode variar de pessoa para pessoa infetada, dependendo em particular do seu sistema imunitário.
A infeção e inflamação induzidas pelo vírus levam à alteração do funcionamento do epitélio do aparelho respiratório, permitindo o aparecimento de infeções secundárias oportunistas potencialmente fatais, tais como pneumonia pulmonar bacteriana por Streptococcus pneumoniae, Staphlyococcus aureus e Haemophilus influenzae.
Somente nos casos em que existe infeção bacteriana secundária é que a terapia com antibióticos se justifica. Contudo, segundo o estudo do Eurobarómetro de 2013, quarenta por cento dos europeus acreditavam erradamente que os antibióticos são eficazes contra a gripe e as constipações[4].
A gripe é frequentemente confundida com a constipação, uma vez que ambas as doenças partilham alguns dos seus sintomas mais frequentes, tais como a congestão nasal, os espirros, a garganta inflamada e a tosse. No entanto, são duas doenças diferentes, provocadas por infeções do aparelho respiratório por vírus diferentes. Os agentes responsáveis pela constipação podem ser vários, mas os mais comuns são os rinovírus e os coronavírus[5], [6].
A constipação é uma infeção das vias aéreas superiores: naso- ou rinofaringite que poderá evoluir para uma infeção de ouvidos. A gripe, por outro lado, caracteriza-se pelo início súbito de mau estar, febre alta acompanhada de dores de cabeça e musculares e tosse seca. É uma doença que pode afetar, tanto as vias aéreas superiores, como inferiores, podendo originar pneumonia, bem como dar origem a sintomas gastrointestinais.
Epidemias de gripe no século XX
Sabemos hoje que a gripe é causada por vírus influenza (também chamados da gripe) que pertencem à família Orthomyxoviridae. Esta família inclui vários géneros distintos de vírus que podem causar doença em diferentes animais. Há pelo menos três géneros que possuem a capacidade de causar doença em humanos, sendo que os que o fazem mais frequentemente são os géneros Alphainfluenzavirus (ou vírus da gripe de tipo A) e Betainfluenzavirus (ou vírus da gripe do tipo B)[7], [8]. Os vírus da gripe do tipo A são os mais frequentes e os que têm causado importantes epidemias da gripe na população humana.
Todos os anos, com a chegada do outono e do inverno, começam a surgir surtosb de gripe (entende-se como sendo o aumento rápido de casos de doença numa determinada região geográfica; o mesmo significado que epidemia)[9], [10]. Embora haja surtos de gripe todos os anos, ocasionalmente surgem surtos em que há mais pessoas infetadas e mais casos graves. Chega a haver grandes pandemias mundiais, como a terrível pandemia de 1918 (também conhecida por “gripe espanhola”) que em 1918 matou mais jovens adultos do que a Primeira Guerra Mundial, a pandemia de 1957-1958 (também chamada “gripe asiática”), a pandemia de 1968 (também chamada “gripe de Hong Kong”) e mais recentemente a pandemia de 2009[11], [12].
A pandemia de 1918 foi das pandemias mais mortíferas de que há registo - estima-se que entre a primavera de 1918 e o inverno de 1919 tenha infetado 500 milhões de pessoas (1/3 da população mundial na época) e causado a morte a pelo menos 50 milhõesc (a população de Portugal em 2019 era de 10,28 milhões). Decorria a Primeira Guerra Mundial e Espanha, que manteve a sua neutralidade na guerra, era o único país onde os correspondentes noticiavam a doença, razão pela qual a epidemia passou a ser conhecida como “gripe espanhola” embora não tenha surgido em Espanha. Na verdade, ainda não se sabe ao certo onde se originou a pandemia: pode ter sido no norte da Europa, em França, na China ou nos EUA, locais onde tinham ocorrido surtos um pouco antes. A gripe espanhola teve uma particularidade: enquanto que habitualmente os grupos mais vulneráveis são as crianças pequenas e os idosos, neste caso a mortalidade atingiu sobretudo os jovens adultos entre os 20 e os 40 anos. Sabe-se hoje que se tratou de uma estirpe (ou variante) H1N1 do vírus da gripe A e ainda hoje decorrem trabalhos de investigação para descobrir porque é que esta estirpe foi tão mortífera.
A pandemia 1957-1958 foi registada pela primeira vez em 1957 no este asiático e causou entre um e dois milhões de mortes em todo o mundo. Esta epidemia foi causada por uma estirpe viral - A H2N2 - que surgiu por redistribuição de segmentos do genoma de estirpes humanas e aviárias[13].
A pandemia de 1968 surgiu em Hong Kong e foi causada por a uma nova variante viral - A H3N2 - que tal como na pandemia anterior, também surgiu por rearranjo de segmentos do genoma do vírus. Estima-se que tenha causado um milhão de mortes[14].
Recentemente, em 2009, surgiu uma outra pandemia, desta vez causada por uma nova variante - A H1N1 - contendo material genético de estirpes de vírus de gripe de humanos, aviárias e suínas, embora não sendo tão mortífera como a gripe espanhola, era altamente contagiosa.
Existem variantes de vírus da gripe que infetam outras espécies, tais como aves e outros mamíferos, tendo caraterísticas que as tornam específicas para estes organismos, embora possam, ao longo do tempo, sofrer alterações que lhes permitem infetar novas espécies hospedeiras[15].
hospedeiras10. O vírus da gripe sofre alterações - evolui - com rapidez. Estas alterações podem ocorrer por acumulação de alterações pontuais no material genético ou por rearranjos entre o material genético de diferentes estirpes, devido a fenómenos de redistribuição, uma vez que o genoma destes vírus é segmentado. Isto conduz às diferentes estirpes em circulação e, por vezes, as novas variantes que surgem por rearranjos de genomas podem originar epidemias de gripe.
Atualmente investiga-se a origem e a explicação para os efeitos mais nefastos de algumas variantes mais agressivas, procurando-se respostas, entre outros campos da ciência, na evolução dos genomas destes vírus.
Epidemiologia e desenvolvimento da vacina
Nas regiões temperadas do globo, os surtos de gripe ocorrem principalmente no inverno. Em Portugal os “picos” da época da gripe costumam ocorrer em janeiro/fevereiro. Os vírus conseguem manter-se viáveis em condições de humidade (devido à necessidade de o invólucro viral de origem lipídica se manter intacto para que haja infeção), por isso as condições climatéricas de inverno, com maior humidade e temperaturas mais baixas favorecem a propagação do vírus. Além disso, os nossos comportamentos durante o inverno favorecem cem o contágio, ao passarmos mais tempo em ambientes fechados, com mais pessoas. Os dados científicos indicam que a transmissão do vírus da gripe ocorre principalmente por contacto próximo, através de gotículas respiratórias emitidas pelo indivíduo infetado ao tossir, espirar, ou falar[16].
Um estudo nos Estados Unidos da América mostrou que a duração das epidemias nas cidades parece depender também das características da própria cidade. Em cidades maiores, com maior densidade populacional, fator que facilita a transmissão, as épocas da gripe são geralmente mais longas e menos dependentes das condições climáticas, enquanto em cidades mais pequenas os surtos são mais curtos e mais dependentes das condições climáticas[17].
As epidemias são monitorizadas em todo mundo, sendo avaliadas as estirpes em circulação e os seus efeitos na população, o que permite desencadear alertas e desenvolver vacinas apropriadas em cada ano. Esta monitorização decorre ao longo de todo ao ano, uma vez que a época da gripe durante o inverno do hemisfério sul ocorre quando no hemisfério norte ainda é verão. Esta vigilância é feita em Portugal através do Programa de Vigilância Integrada, Clínica e Laboratorial, da Síndrome Gripal, um programa que existe desde 1990[18].
Todos os anos, no outono, a Direção-Geral da Saúde (DGS), a autoridade de saúde em Portugal, indica uma época de vacinação da gripe e aconselha a vacinação dos grupos considerados mais vulneráveis. Como o “pico” da época da gripe costuma ser em janeiro/ fevereiro, é aconselhado que a vacinação seja feita antes. A vacina, porém, começa a ser preparada bem mais cedo.
A vacina contra a gripe, tal como outras vacinas, é uma preparação de substâncias derivadas de um agente infecioso determinado ou quimicamente semelhante a essed. Ao ser administrada, a vacina vai induzir uma resposta imunitária específica para este agente infecioso, como se o indivíduo estivesse infetado por este (é “imunogénica”), mas sem provocar a doença, pois não possui agente infecioso com capacidade de se reproduzir e causar a doença. Assim, esta resposta imunitária é protetora contra a doença. No caso do indivíduo vacinado vir a ser realmente infetado, o sistema imunitário poderá responder rápida e eficazmente.
Há doenças que se as contrairmos uma vez ficamos protegidos para o resto da vida. No caso da gripe, porém, se a contrairmos num determinado ano não impede que voltemos a ter gripe no ano seguinte. Isto porque o vírus sofre alterações genéticas (mutações, e ocasionalmente rearranjos) e as variantes em circulação variam de um ano para outro. Por esta razão, a vacina contra a gripe tem uma composição diferente todos os anos e está preparada para nos proteger no ano em que a tomamos.
As vacinas administradas em Portugal seguem as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a época outono-inverno para o hemisfério nortee: todos os anos, em fevereiro, a OMS emite informações sobre as variantes prováveis do vírus da gripe que se prevê que circularão no hemisfério norte no inverno seguinte, e os fabricantes iniciam a produção da vacina. Como o processo de fabrico, registo e licenciamento demora 6-7 meses, a vacina fica disponível em setembro-outubro. As recomendações são baseadas nas estirpes em circulação e no conhecimento gerado pela investigação sobre a dinâmica das populações dos vírus da gripe. Por exemplo, a vacina trivalente para o hemisfério norte no ano de 2020[19] contém vírus atenuados ou antigénios de superfície das estirpesf, g:
- Uma estirpe viral A (H1N1)pdm09 idêntica à estirpe A/ A/Guangdong-Maonan/ SWL1536/2019;
- Uma estirpe viral A (H3N2) idêntica à estirpe A/Hong Kong/2671/2019;
- Uma estirpe viral B (linhagem B/Victoria) idêntica à estirpe B/Washington/02/2019
Produção da vacina da gripe
Consoante a vacina em causa, há diferenças no modo de produção. No caso da vacina contra a gripe, existem vários métodos aprovados para sua produção[20], mas o método mais comum é o método dos ovos, que implica a utilização de ovos embrionados e consiste em proliferar os vírus em ovos fertilizados de galinha e sua posterior purificação e inativação. O processo inicia-se com a escolha das estirpes alvo que se deseja incluir na vacina. Os ovos fertilizados de galinha são inoculados com duas estirpes virais - uma estirpe alvo e uma estirpe adaptada a células de galinha e que é inofensiva para humanos. Os vírus irão replicar dentro dos ovos e irá ocorrer rearranjo entre os segmentos do genoma viral das duas estirpes. Selecionam-se vírus que contenham os segmentos de H e de N da estirpe alvo e com restante genoma (restantes seis segmentos) da estirpe que se replica eficazmente em células de galinha. Esta nova estirpe irá ser produzida em massa em ovos fertilizados de galinha e posteriormente selecionada e inativada. Seguem-se mais fases de purificação e testes. Este método é fiável, mas é lento, pelo que não é adequado em casos de grande procura ou de pandemia. Na composição final da vacina existem outros componentes, como estabilizantes para garantir a estabilidade da solução e adjuvantes - compostos que potenciam a resposta imunitária.
A capacidade da vacina para proteger da gripe depende da coincidência das estirpes incluídas na vacina, previstas meses antes, com as estirpes em circulação na comunidade e as próprias características da pessoa vacinada como por exemplo a sua idade e estado geral de saúde.
Atualmente investiga-se a possibilidade de usar métodos mais rápidos de produção de vacinas para a gripe e também o desenvolvimento de vacinas “universais”[21], que possam conferir proteção contra todas as estirpes de gripe.
As vacinas contra a gripe são eficazes e seguras, e a vacinação anual é a forma mais eficiente de reduzir os efeitos da gripe.
Notas
a) O termo português — gripe — deriva da palavra francesa grippe, agarrar com força, refletindo a forma brusca com que se manifestam os sintomas iniciais da doença.
b) Surto: aumento rápido de casos de doença numa determinada região geográfica; o mesmo significado que epidemia.
c) A população de Portugal em 2019 era de 10,28 milhões.
d) De acordo com a vacina em causa, há diferenças nos antigénios utilizados e no modo de produção.
e) As recomendações da OMS para o hemisfério norte e hemisfério sul ocorrem separadamente e de acordo com calendário próprio.
f) A nomenclatura das estirpes do vírus da gripe segue convenções internacionais, que indicam o tipo de antigénio (A, B, ou C), hospedeiro de origem caso não seja humano, origem geográfica, número da estirpe e ano em que foi isolada. No caso dos vírus A indica também a descrição da hemaglutinina e neuramidase (p.e. H1N1)
g) As recomendações anuais podem ser consultadas nos sites www.who.int, www.dgs.pt, ou no folheto informativo que acompanha a vacina contra a gripe.
Agradecimentos
As autoras agradecem ao Doutor João Piedade (Professor Auxiliar de Virologia Médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical) a revisão científica deste artigo.
[editar] Referências
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Criada em 30 de Novembro de 2020
Revista em 1 de Março de 2021
Aceite pelo editor em 15 de Junho de 2021