Sabão contra a COVID-19

Da WikiCiências
Share/Save/Bookmark
Ir para: navegação, pesquisa

Referência : Fernandes, P.A., Ramos, M.J., (2020) O sabão contra a COVID-19, Rev. Ciência Elem., V8(2):019
Autores: Pedro Alexandrino Fernandes e Maria João Ramos
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [http://doi.org/10.24927/rce2020.019]
PDF Download


Este pequeno artigo pretende explicar, de uma forma simples o mecanismo pelo qual a lavagem das mãos com sabão impede a infeção pelo vírus causador do COVID-19. Como o leitor se irá aperceber, tudo roda em torno de dois conceitos fundamentais da química: a hidrofilicidade e a hidrofobicidade. A forma como substâncias hidrofílicas se agregam entre si, e evitam o contacto com substâncias hidrofóbicas (o chamado “efeito hidrofóbico”) faz com que o sabão literalmente “desmonte” este e muitos outros vírus.


O que é um vírus?

Um vírus é uma estrutura molecular relativamente complexa, composta por material genético (maioritariamente RNA, mas por vezes DNA, dependendo do vírus), um involucro de proteínas a circunscrevê-lo (denominado “cápside”) e, geralmente, uma membrana constituída por uma bicamada de fosfolípidos e proteínas associadas, derivadas das células que ele infetou. A membrana fosfolipídica incorpora também proteínas virais, que a atravessam e se projetam para fora do vírus, e que são essenciais para que o vírus reconheça e penetre nas células a infetar. A membrana e os seus componentes adicionais denomina-se “envelope viral”. Quando o vírus se encontra completamente organizado e em circulação, fora das células que vão ser infetadas, diz-se estar sob a forma de virião (FIGURA 1).

Os vírus têm dimensões submicroscópicas, não podendo ser observados por microscópios óticos. A sua maioria tem 50-200 nanómetros, e são cerca de 100 vezes menores que a maior parte das bactérias. Os chamados “vírus gigantes” têm geralmente 200-400 nanómetros. Existem milhões de vírus diferentes, embora apenas cerca de 5 mil estejam bem estudados.

Os vírus estão disseminados por todos os organismos vivos. Estão na fronteira entre um ser vivo e um agregado molecular. Partilham algumas características com os seres vivos, tais como possuírem material genético e evoluírem por seleção natural, mas faltam-lhe outras características fundamentais, tais como possuir uma organização celular e ter capacidade de replicação autónoma - os vírus precisam de recrutar as ferramentas das células do organismo hospedeiro para se conseguirem replicar. A grande maioria dos microbiólogos não considera os vírus como sendo seres vivos.


FIGURA 1. A estrutura típica de um vírus. O vírus ilustrado é o SARS-CoV-2, o causador da pandemia COVID-19. Na figura pode observar-se a membrana viral (bicamada fosfolipídica, azul), a cadeia simples de RNA do vírus (bege/tijolo, com cerca de 30 mil bases) e as quatro proteínas virais, denominadas proteína S (do inglês spike, espigões, amarelos) , proteína M (do inglês, membrane, a verde), proteína E (do inglês, envelope, a roxo) e proteína N (do inglês, nucleocapsid, em branco, não desenhada explicitamente). As proteínas S, M e E estruturam o envelope viral e a proteína N envolve o material genético. Reproduzido de J. Med. Virology (2020), 92, 424-432.

Pandemias através da história

Nem todos os vírus são patogénicos. Muitos deles podem coexistir com o hospedeiro durante longos períodos sem provocar patologias. Alguns, no entanto, são extremamente patogénicos, e estão na origem de doenças tais como a gripe, a raiva, a SIDA, o ébola ou a síndrome respiratória aguda (SARS, na sigla inglesa), entre outras. Quando se disseminam por vastas regiões, por mais do que um continente, dão origem a uma pandemia. A pandemia mais mortífera da história, a peste negra da idade média (1346-1351), foi causada por uma bactéria, e terá morto 1/3 dos habitantes do continente europeu (75-125 milhões de pessoas). Um surto desta mesma peste teve lugar na antiguidade, e foi denominada a Peste de Justiniano (541–542 A.D.). Deflagrou no Império Romano do Oriente, podendo ter vitimado 25-100 milhões de pessoas, metade da população europeia naquela época. Mas sobre esta os registos são menos precisos.

A pandemia mais grave causada por um vírus foi a gripe espanhola (1918-1920), que terá causado 50-100 milhões de mortes e terá estado na origem da cessação da 1ª guerra mundial. Esta gripe tinha a particularidade de vitimar essencialmente pessoas jovens, devastando assim vastas extensões dos exércitos beligerantes, constituídos por homens jovens em grande proximidade física. A pandemia mais grave a decorrer nos nossos dias é a SIDA (1981-presente), também causada por um vírus, e que se estima ter morto já 32 milhões de pessoas.

Estes números ajudam a compreender o potencial perigo que uma pandemia pode ter e, consequentemente, as medidas extremas que têm sido tomadas para controlar o mais possível a pandemia COVID-19, causada pelo vírus denominado SARS-CoV-2.


Como controlar a pandemia COVID-19?

O vírus espalha-se através de gotículas expelidas pela respiração e pela tosse. Como tal, acredita-se que a melhor forma de controlar a propagação do vírus é evitar o contacto social, para não respirar as referidas gotículas, para que estas não pousem nos nossos olhos e para não tocar nas superfícies onde elas pousam. No caso de tocar nas referidas superfícies, o vírus fica agarrado às mãos, e pode infetar o ser humano se este a seguir tocar no nariz, boca ou olhos. Nesse sentido, torna-se absolutamente fundamental inativar e eliminar os vírus alojados nas mãos. A melhor forma de o fazer: lavar as mãos com água e sabão.


Porque é que lavar as mãos com sabão inativa e elimina o vírus?

Como se pode ver na FIGURA 1, a estrutura externa do vírus é constituída por proteínas e fosfolípidos. Tem-se dito na comunicação social, e mesmo em muitos artigos de divulgação, que tais compostos são relativamente gordurosos e hidrofóbicos, sendo pouco solúveis em água. Tal implicaria que lavar as mãos apenas com água não seria suficiente para remover o vírus. Todos sabemos que a água não é um bom agente para retirar compostos gordurosos como a manteiga ou o azeite das nossas mãos. Com o vírus dar-se-ia o mesmo fenómeno...

No entanto, esta explicação, apesar de simples e de fácil compreensão, não é cientificamente rigorosa. De facto, lavar as mãos com sabão é fundamental para inativar o vírus, mas o verdadeiro motivo é outro...

Os compostos químicos podem ser classificados como hidrofílicos (compostos polares que se solubilizam em água) ou hidrofóbicos (compostos apolares que são insolúveis em água). As moléculas de compostos hidrofílicos interatuam entre si através de interações eletrostáticas originadas pelos seus dipolos e cargas iónicas. Já os compostos hidrofóbicos interatuam entre si através de forças de van der Waals, mais fracas (também conhecidas como interações dipolo instantâneo-dipolo induzido). Quando misturamos água e azeite, as interações entre os dipolos das moléculas de água são tão favoráveis que estas se agregam umas às outras, excluindo o azeite, que apenas tem interações de van der Waals para oferecer. E assim se formam duas fases separadas. A este efeito de agregação de moléculas hidrofílicas e expurgação de moléculas hidrofóbicas chama-se efeito hidrofóbico.

A face exterior do vírus é composta pela sua membrana e pelas proteínas S, M e N. As membranas virais são constituídas por fosfolípidos, que são moléculas anfifílicas: compostos com uma porção hidrofílica e uma porção hidrofóbica. Um exemplo típico de fosfolípido constituinte de membranas celulares, e membranas virais, é a fosfatidilcolina (FIGURA 2).


FIGURA 2. Uma molécula de fosfatidilcolina, evidenciando o seu carácter anfifílico, onde a região hidrofílica está marcada a azul e a região hidrofóbica está marcada a cor salmão.

As membranas virais, que provêm de células hospedeiras, estão organizadas sob a forma de bicamada, expondo as regiões hidrofílicas para o meio exterior aquoso e as regiões hidrofóbicas para o interior da bicamada, tal como é esquematizado na FIGURA 3, seguindo o código de cores usado na representação da fosfatidilcolina na FIGURA 2. Esta organização permite que as regiões hidrofílicas, polares, interajam com o solvente aquoso (também hidrofílico) que se encontra no meio exterior, e que se escondam as regiões hidrofóbicas do solvente aquoso, como se se tratasse de uma mistura de água e azeite.


FIGURA 3. Os fosfolípidos organizam-se em bicamadas, expondo as regiões polares para o exterior aquoso, e as regiões hidrofóbicas para o interior da bicamada, interatuando entre si. Assim se evita o contacto das regiões hidrofóbicas com o meio aquoso e se maximiza os contactos das zonas hidrofóbicas entre si.

Assim sendo, a face externa do vírus é hidrofílica, e não “gordurosa” como por vezes tem sido dito noutras fontes. A face exterior do vírus apresenta também as proteínas S, M e E, bem como proteínas provenientes da membrana da célula hospedeira, mas também estas proteínas são hidrofílicas nas suas porções expostas.

Assim sendo, a analogia da lavagem do vírus com a lavagem de gordura das mãos não é a mais adequada.

Qual é então o verdadeiro mecanismo de ação do sabão?

O sabão possui também compostos anfifílicos na sua composição, tal com a membrana viral os tem, que usa para dissolver gorduras, sendo geralmente denominados agentes tensioativos. Um exemplo típico é o estearato de sódio, um componente muito comum em sabão (FIGURA 4):


FIGURA 4. Estearato de sódio, um composto anfifílico frequentemente encontrado em sabãos. A região a laranja é hidrofílica, e a região a verde é hidrofóbica.

Quando dissolvidos em água estes tensioativos formam micelas: agregados moleculares esféricos, onde as regiões hidrofóbicas ficam orientadas para o centro, protegidas do solvente aquoso, e as regiões hidrofílicas ficam viradas para fora, expostas ao solvente. Estas micelas têm a capacidade de encapsular materiais hidrofóbicos (gordurosos) no seu interior (partícula azul na FIGURA 5), e assim “solubilizá-los” em água. Mais rigorosamente, os materiais hidrofóbicos são dissolvidos pela micela, e a micela é dissolvida pela água. É desta forma que o sabão consegue solubilizar e remover gordura (manteiga, azeite) das nossas mãos.


FIGURA 5. Micela de estearato de sódio encapsulando uma “gordura”, ou seja, um composto hidrofóbico (a azul).

Quando os agentes tensioativos entram em contacto com o vírus que está alojado nas nossas mãos, eles começam por se introduzir na sua membrana, por serem muito parecidos com os fosfolípidos que a constituem (note-se a semelhança entre a estrutura da fosfatidilcolina e do o estearato de sódio). Ou seja, organizam-se em bicamada. As caudas carbonadas do estearato de sódio colocam-se paralelamente às caudas carbonadas dos fosfolípidos, estabelecendo com elas interações de van der Waals, e o grupo carboxilado coloca-se em contacto com as cabeças polares dos fosfolípidos, estabelecendo com elas interações dipolares e iónicas. Trata-se de um arranjo muito favorável. Quando a concentração de tensioativo está abaixo de um certo limite, a estrutura da bicamada membranar mantém-se relativamente intacta (FIGURA 6, topo). No entanto, quando a concentração de tensioativo misturado na membrana ultrapassa um determinado limite, a estrutura da mistura deixa de se assemelhar à bicamada membranar típica do vírus, e passa a organizar-se sob a forma de micela, de composição mista, à imagem do que acontece com o sabão (FIGURA 6, base):


FIGURA 6. Topo: Bicamada membranar do vírus em contacto com uma baixa concentração de tensioativo proveniente do sabão. O tensioativo intercala-se entre os fosfolípidos e toma o seu lugar, mantendo no entanto a estrutura da bicamada que protege o interior do vírus relativamente intacta. Base: Rutura da bicamada e formação de micelas de composição mista, quando a concentração de tensioativo é elevada.

As micelas de composição mista desprendem-se da membrana, e vão abrindo poros na mesma, desagregando-a lentamente. As proteínas S, M e E separam-se da membrana. Note-se que sem a proteína S o vírus é incapaz de penetrar numa célula humana, tornando-se não-patogénico. Lentamente as proteínas da cápside espalham-se, o RNA do vírus solta-se, e o vírus fica completamente desagregado e “desmontado”. Uma vigorosa lavagem de mãos, com água corrente, não só elimina estes restos do vírus, como ainda elimina alguns vírus que não foram desagregados por falta de tempo. Mesmo que os restos do vírus fiquem nas mãos, eles já não são infeciosos. E assim se previne a infeção!

Compreende-se a recomendação muitas vezes repetida durante a pandemia: lave frequentemente as mãos com sabão. Com muito sabão, para que a concentração de tensioativos seja elevada, e demoradamente, para permitir que haja tempo para a desagregação das membranas virais o mais extensamente possível. E enquanto não lavar as mãos, não toque com elas na boca, nariz e olhos, para não oferecer ao vírus uma porta de entrada para o interior do seu corpo!




Recursos relacionados disponíveis na Casa das Ciências:

  1. AL2.6 | 11º ano - Dureza da água e problemas de lavagem.




Criada em 10 de Abril de 2020
Revista em 12 de Abril de 2020
Aceite pelo editor em 21 de Abril de 2020