Hifomicetes aquáticos

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Referência : Gonçalves, AL, (2017) Hifomicetes aquáticos, Rev. Ciência Elem., V5(2):016
Autor: Ana Lúcia Gonçalves
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: http://doi.org/10.24927/rce2017.016

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Resumo

Hifomicetes aquáticos (HA), fungos microscópicos imperfeitos pertencentes essencialmente aos filos Basidiomycota e Ascomycota, também conhecidos por hifomicetes de água doce ou fungos Ingoldianos, graças ao taxonomista que os isolou, identificou e descreveu, pela primeira vez (Ingold, 1942; trata-se de um grupo polifilético de fungos aquáticos, reconhecidos por terem a capacidade de esporular e de se desenvolver em folhas imersas em decomposição (Bärlocher, 2005). São típicos de cursos de água turbulenta e bem oxigenada, preferencialmente não poluída, como os ribeiros de montanha.


Os ecossistemas ribeirinhos são hotspots de biodiversidade e desempenham um papel fundamental na manutenção do bom estado ecológico de toda a rede fluvial. Em zonas temperadas, estes sistemas são frequentemente ladeados por árvores que, pela sombra das suas copas, inibem a fotossíntese e, portanto, a produção primária. Estes pequenos cursos de água doce tornam-se assim ecossistemas com características heterotróficas, onde a maior parte dos organismos aquáticos dependem direta ou indiretamente da matéria orgânica, sobretudo folhas, fornecidas pelo ambiente terrestre que os ladeia. Os hifomicetes aquáticos são, por excelência, a chave de incorporação da folhada nestas cadeias alimentares “castanhas” (Zou et al, 2016); são os principais organismos decompositores que, pela sua presença e atividade, garantem o funcionamento destes ecossistemas.

Os hifomicetes aquáticos decompõem rapidamente as folhas assim que estas entram na água. Graças às suas enzimas extracelulares são capazes de degradar o tecido foliar, nomeadamente os componentes das paredes celulares (e.g., substâncias pécticas, hemicelulose, celulose, lenhina), convertendo-o em substâncias mais simples e passíveis de ser mais facilmente digeridas e assimiladas pelos consumidores primários, nomeadamente pelos detritívoros trituradores (Wipfli et al, 2007). Este grupo funcional de invertebrados integra uma elevada diversidade de organismos, como larvas de insetos e também crustáceos, que servirão de alimento a predadores (também eles macroinvertebrados, peixes, anfíbios ou mesmo aves).

A identificação e taxonomia dos HA é feita normalmente com base na morfologia e desenvolvimento dos seus esporos. Recorre-se, para isso, a métodos tradicionais de recolha, i.e. filtragem da água, recolha de espumas ou folhas em decomposição, e posterior observação microscópica (Bärlocher, 2005). Até 2007, mais de 600 espécies de HA foram identificadas, descritas e documentadas, reconhecendo-se a ubiquidade destes fungos e a sua preferência por ribeiros de águas bem oxigenadas e turbulentas (Shearer et al, 2007). Recentemente, técnicas moleculares baseadas no DNA extraído das diferentes espécies de HA têm vindo a ser aplicadas, contribuindo para uma caracterização genética destes organismos e desvendando uma biogeografia ecológica até agora desconhecida (Duarte et al, 2016).


Figura 1. Esporos de hifomicetes aquáticos observados ao microscópio óptico usando a ampliação de 250x: a) Lemoniera terrestris, b) Tetracladium marchalianum de Wild., c) Clavariopsis aquatica de Wild., d) Flagellospora curta Webster, e) Heliscus lugdunensis Sacc. and Thérry, f) Culicidospora aquatica R.H. Petersen, g) Anguillospora filiformis Greath., h) Heliscus submersus H.J. Huds., i) Articulospora tetracladia Ingold.


A história dos HA inicia-se com os esporos (também designados por conídios); estes têm a sua origem em estruturas presentes nas extremidades de hifas fúngicas, os conidióforos, e garantem a reprodução assexuada destes fungos. Os esporos (Figura 1) apresentam diferentes formas e tamanhos – multirradiados (frequentemente tetrarradiados), sigmoides ou globulosos – e são libertados para a coluna de água (Ingold, 1975; Gulis et al, 2005; Shearer et al, 2007). Durante o outono, época em que existe uma maior quantidade de folhas no leito dos ribeiros, podemos encontrar até um máximo de 30 000 esporos/L num curso de água (Bärlocher, 2000, 2009). A “ancoragem” dos esporos nos diferentes substratos orgânicos, principalmente as folhas submersas, é facilitada pela produção de uma mucilagem e a sua germinação ocorre através do crescimento de hifas que avançam na superfície e invadem o mesófilo foliar. Podemos encontrar até 23 espécies de fungos a colonizar uma mesma folha, ao mesmo tempo (Shearer & Webster, 1985).

O crescimento do micélio (Figura 2) das diferentes espécies de HA que atingem a folha dá início a um processo designado por condicionamento foliar; este consiste essencialmente no aumento da palatabilidade e qualidade nutricional da folhada que ficará disponível para consumo pelos trituradores. Este incremento do valor nutritivo do substrato pode dever-se ao ([1]). aumento da biomassa fúngica, à ([2]) imobilização de nutrientes (sobretudo azoto) pelo micélio a partir da água, à ([3]) degradação enzimática (e.g., pectinases, hemicelulases, celulases, lenhinases, fenoloxidases) e maceração do tecido foliar e ao ([4]) enriquecimento da folha com enzimas que os consumidores não possuem no seu sistema digestivo (Canhoto & Graça, 2008). Estas transformações são determinantes para a incorporação da matéria orgânica nas cadeias alimentares. Sabe-se que os invertebrados detritívoros consomem preferencialmente material foliar completamente condicionado pelos fungos em comparação com material não condicionado, bem como possuem a capacidade de discriminar e dar primazia à ingestão de folhas colonizadas por micélio de certas espécies de HA em detrimento de outras. Esse comportamento alimentar diferenciado pode vir a ter repercussões no ciclo de vida desses animais, em particular na sua capacidade reprodutiva, crescimento e sobrevivência (Canhoto & Graça, 2008). Logo, atividades humanas (e.g. poluição, alteração da cobertura vegetal) que impliquem alterações na diversidade, biomassa e atividade das comunidades fúngicas associadas às folhas são suscetíveis de afetar o fluxo de energia nos ribeiros e a qualidade da sua água (Krauss et al, 2011).


Figura 2. Micélio de hifomicetes aquáticos: a) Articulospora tetracladia e b) Heliscus lugdunensis, a crescer em meio sólido de agar dentro de caixas de Petri.


A decomposição das folhas (promovida por fungos e invertebrados, figura 3) é um o processo-chave nestes ribeiros florestados, e é indicadora do seu estado de “saúde” (Gessner et al, 2007) e da qualidade dos serviços que nos prestam. Apesar de desconhecidos da comunidade em geral, o olhar atento da comunidade científica tem vindo a identificar e a descrever uma aparente capacidade que os HA possuem de garantir o funcionamento dos ecossistemas ribeirinhos em situações de stress, frequentemente atenuando e mitigando o efeito das diferentes ameaças antropogénicas. Alguns estudos apontam mesmo um elevado potencial biotecnológico destes microrganismos, indicando-os como candidatos a biorremediadores ambientais dos sistemas aquáticos (Krauss et al, 2011).


Figura 3. Ribeira da Fórnea, Serra da Lousã, Portugal (imagem de Joana Alves).


Referências

  1. Bärlocher, F, 2000. Waterborne conidia of aquatic hyphomycetes: seasonal and yearly patterns in Catamaran Brook, New Brunswick, Canada. Canadian Journal of Botany 78: 157-167.
  2. Bärlocher, F, 2005. Freshwater fungal communities. In: Deighton J, White Jr JF, Oudemans P (Eds.), The fungal community: its organization and role in the ecosystem. Taylor & Francis, CRC Press, pp. 39- 60.
  3. Bärlocher, F, 2009. Reproduction and dispersal in aquatic hyphomycetes. Mycoscience 50: 3-8.
  4. Canhoto C, Graça MAS, 2008. Interactions between fungi (aquatic Hyphomycetes) and invertebrates. In: Sridhar KR, Bärlocher F, Hyde KD (Eds.), Novel techniques and ideas in mycology. Fungal Diversity Research Series 20. Fungal Diversity Press, Chiang Rai, Thailand, pp. 305-325.


Criada em 15 de Junho de 2017
Revista em 15 de Junho de 2017
Aceite pelo editor em 15 de Junho de 2017