Determinismo biológico, genético e epigenético

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Referência : Nicola, L. R. M., Silva, E. P., (2022) Determinismo biológico, genético e epigenético, Rev. Ciência Elem., V10(4):055
Autores: Luca Ribeiro Mendes Nicola e Edson Pereira Silva
Editor: João Nuno Tavares
DOI: [https://doi.org/10.24927/rce2022.055]
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Resumo

O determinismo biológico pode ser definido como a noção de que características biológicas dos seres humanos determinam o seu sucesso ou fracasso. Esta ideia tem-se manifestado na ciência sob diversas formas ao longo da história, sempre em diálogo com os avanços científicos de determinada época. Contudo, seja qual for a forma que assume, o determinismo biológico está sempre eivado de reducionismos e incoerências. Neste trabalho, três versões do determinismo (biológico, genético e epigenético) são apresentadas e discutidas. A conclusão é que a biologia humana não é um destino, mas a base sobre a qual construímos o desenvolvimento social humano.



Este fenómeno óbvio entre os outros seres vivos torna-se mais complexo nos seres humanos, uma vez que estes são caracterizados por apresentarem um desenvolvimento social que se sobrepõe aos seus limites biológicos. Por exemplo, a biologia do humano não lhe permite voar, mas por meio do desenvolvimento intelectual e técnico dos últimos séculos, a humanidade foi capaz de construir um veículo — o avião — que permite desafiar, mesmo que à custa de muita energia, a lei da gravidade. Do mesmo modo, para qualquer organismo individual que depende da sua visão, a miopia (um alongamento excessivo do globo ocular que promove a visão turva de longa distância) representaria uma séria dificuldade à sobrevivência, contudo, com o advento da oftalmologia e da ótica moderna, essa condição pode ter os seus efeitos reduzidos e até completamente remediados nos seres humanos pela utilização de óculos e lentes de contacto, possibilitando que adultos com miopia, cuja incidência varia entre 10% e 30% em diversos países, vivam normalmente[1]. Dito isso, tem sido uma tentativa recorrente, fundamentalmente ao longo do último século, mostrar que nos seres humanos a sua biologia tem um papel determinante no sucesso ou no fracasso dos indivíduos e, especialmente, de determinados grupos, géneros, etnias, etc.. O conjunto dessas tentativas forjadas em explicações e teorias é o que compõe o chamado determinismo biológico.


Determinismo Biológico

Alguns cientistas do século XIX estiveram envolvidos com o programa de pesquisa anatómica que pretendia testar a hipótese de que a anatomia do cérebro humano estava correlacionada com supostas diferenças intelectuais e morais dos grupos humanos que eram identificados como “raças”[2]. Uma das iniciativas deste programa de pesquisa era a craniometria, que media o tamanho de crânios de representantes de populações americanas, africanas, europeias e asiáticas na esperança que fossem encontradas correlações entre o tamanho dos crânios e a inteligência. Um dos objetivos subjacentes à craniometria era demonstrar que existia uma hierarquia racial biologicamente determinada que justificaria a dominação social imposta pela colonização, bem como as suas práticas, entre elas a escravidão.

Os argumentos simples e sedutores da craniometria escondiam, entretanto, erros teóricos e empíricos grosseiros. Por exemplo, a craniometria assumia que a posição de privilégio social dos colonizadores advinha da sua inteligência superior e que esta estaria refletida no maior tamanho do cérebro destes grupos. Assumindo esta relação direta entre tamanho de cérebro e inteligência dever-se-ia concluir, portanto, que os elefantes, e não os colonizadores, eram os animais mais inteligentes da Terra. Além disso, aquilo que se designa como inteligência, até hoje, não está bem definido[3]. Contudo, não foi nenhuma das fragilidades teóricas ou experimentais que determinaram o abandono da craniometria, mas sim o fracasso dos seus maldisfarçados interesses políticos. Pelo final do século XIX, quando se tornou claro que não era possível demonstrar a superioridade dos brancos ou colonizadores com este programa de pesquisa, ele caiu em descrédito. Mas o determinismo biológico que era a sua base ressurgiu com mais força no século XX, amparado no desenvolvimento da genética.


Determinismo Genético

A redescoberta dos trabalhos de Gregor Mendel (1822—1884) no início do século XX por Carl Correns (1864—1933), Erich Tschermak (1871—1962) e Hugo de Vries (1848—1935) de maneira independente, permitiu o estudo dos padrões de herança observados para muitas características em vegetais e animais e a manipulação em larga escala de cruzamentos com o objetivo de aumentar a produtividade agropecuária. Além disso, muitos investigadores passaram a estudar a maneira pela qual os fatores hereditários propostos por Mendel (posteriormente chamados de genes) determinavam, também, o conjunto das características humanas. Nesse contexto, os adeptos do determinismo biológico criaram a expectativa de se reduzir as características sociais dos seres humanos ao determinado pela sua base genética. Essa crença exacerbada no poder dos genes designada determinismo genético e os trabalhos interessados nessa nova forma de determinismo pretendiam investigar a base genética de características complexas como agressividade, inteligência, homossexualidade, etc..

Um exemplo de sucesso comercial no campo do determinismo genético foram os testes de quociente de inteligência (QI) que asseguravam medir a inteligência inata dos indivíduos. Contudo, como já foi referido aqui, a inteligência não tem uma definição objetiva. Obscurecendo este fato, os deterministas genéticos, quando questionados sobre o que seria a inteligência, respondiam que ela era aquilo que os testes de QI mediam. Se, pelo contrário, lhes perguntavam o que mediam os testes de QI, respondiam que eles mediam a inteligência. Ou seja, denunciavam uma ausência de definição na tautologia que eles enunciavam, sendo incapazes de oferecer uma definição precisa e independente do fenómeno.

A inteligência não pode ser compreendida como uma entidade genética fixa, mas sim como um processo intimamente relacionado ao contexto social, cultural e económico das diferentes populações humanas. Além disso, é incorreto supor que qualquer característica que tenha a sua codificação identificada no ácido desoxirribonucleico (DNA) é um destino inapelável do ser humano, como já foi visto, por exemplo, em relação à miopia. Mas pode-se também lançar mão de outro exemplo, aquele da fenilcetonúria, uma doença hereditária que, apesar disso, pode ter seus efeitos remediados a partir de medidas profiláticas como a dieta alimentar e reposição nutricional desde o nascimento. Ao contrário do que queriam os proponentes do determinismo genético, hereditário não significa inevitável.

Em termos de sucesso comercial, os testes de QI só seriam superados, no final do século XX, pela iniciativa do Projeto Genoma Humano (PGH), um empreendimento bilionário iniciado na década de 1990 e patrocinado por agências governamentais dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, China e Japão, além de empresas privadas como a Celera Genomics. O objetivo de descodificar a sequência total dos nucleotídeos humanos foi alcançado em 2003, contudo, frustrando as expectativas dos deterministas.


Projeto Genoma Humano

A expectativa mais modesta do Projeto Genoma Humano (PGH) era que a descodificação da sequência de nucleotídeos que compõe o genoma humano trouxesse respostas sobre como tratar doenças complexas tais como o cancro. A expectativa mais ambiciosa era que fosse revelado o Santo Graal da “natureza humana”[4]. Do ponto de vista técnico, o PGH levou a grandes avanços, como o desenvolvimento de sequenciadores que permitiram reduzir drasticamente o tempo necessário para sequenciar cadeias de DNA. Em certa medida, também, o PGH influiu decisivamente no estabelecimento do campo da genómica[5]. Contudo, em relação à determinação genética das características, os resultados do PGH ficaram muito aquém do esperado. A ambição de encontrar relações diretas de causa e efeito entre sequências de DNA e características como inteligência, agressividade, preferência sexual, preferência política, etc., foi substituída pela conclusão de que nem a relação entre DNA e genes era bem conhecida. Um exemplo disso é que, no início do PGH, esperava-se encontrar algo em torno de 100 000 genes na sequência de DNA e, alguns anos após a sua conclusão, não só foram encontrados menos genes do que o esperado (em torno de 20 000 a 30 000), como, dependendo da definição de gene utilizada nas diversas bases de dados existentes, se encontraram diferentes quantidades totais de genes (TABELA 1).


TABELA 1. Diferentes estimativas de componentes do genoma de acordo com a base de dados utilizada. Nas colunas encontram-se as diferentes bases de dados e na linha a quantidade de genes que codificam proteínas[6].

Nesse sentido, a grande conquista teórica do PGH foi — apesar das fantasias dos seus idealizadores — rechaçar a perspectiva grosseira do determinismo genético. Além da imensa frustração com os resultados do PGH, as pretensões do determinismo genético pareciam estar sendo sepultadas com o desenvolvimento das ideias da epigenética... Só que não.


Determinismo Epigenético

Conrad Waddington (1905—1975), no final da década de 1940, cunhou o termo “epigenética” para explicitar que o desenvolvimento de um organismo é o resultado da interação entre o seu conteúdo genético, as influências ambientais e o estado imediatamente anterior daquele mesmo organismo. Essa perspetiva do desenvolvimento relativizava o gene-centrismo que considerava os genes como determinantes do desenvolvimento do organismo e, portanto, desde sempre não era compatível com o determinismo genético[7]. Com a descoberta da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA, esse campo teórico foi cada vez mais preterido pela emergente biologia molecular. Somente a partir do final do século XX, com os avanços da mesma biologia molecular que a tinha rechaçado num primeiro momento, a epigenética foi retomada.

A epigenética, agora suportada pela biologia molecular, tem como objeto de estudo os mecanismos moleculares (metilação de bases nitrogenadas, condensação do DNA, etc.) que influenciam a expressão génica, evidenciando, ainda, como esses mecanismos são respostas a variáveis ambientais. Uma das grandes descobertas desse campo foi a herança epigenética transgeracional, que é uma demonstração clara de que o contexto ambiental não só influencia o desenvolvimento de um organismo como também tem efeitos nas gerações posteriores. Neste sentido, a epigenética, em princípio, estaria em contraposição com a perspectiva do determinismo genético que é gene-centrada. Contudo, tem-se estabelecido uma interpretação dos resultados da epigenética que se configura como um novo determinismo.

O determinismo epigenético é a noção de que os mecanismos epigenéticos contêm todas as possibilidades de variação fenotípica engendradas por variáveis ambientais. Assim, a noção de contingência dos fenómenos ambientais é subsumida por uma perspetiva de programa epigenético na qual toda variação fenotípica já está pré-determinada[8]. O facto de que essa influência ambiental é incorporada no DNA, na forma de moléculas expressas pelo mesmo DNA, é usado pelo determinismo epigenético para afirmar que o fator ambiental age como mero gatilho para uma via de desenvolvimento contida no código epigenético. Ao afirmar isso, contudo, é negligenciada a noção de que cada etapa do desenvolvimento de um organismo depende da interação de diversos fatores com o próprio estado anterior daquele organismo. Ou seja, não é possível tratar o desenvolvimento como um fenómeno linear cujo resultado já está pré-determinado no DNA. Um exemplo disso é a variação de cerdas entre os lados esquerdo e direito da mosca-do-vinagre (Drosophila melanogaster), que não é determinada por nenhuma variação genética ou ambiental, mas depende inteiramente de fenómenos moleculares aleatórios associados à formação daquelas células, sendo comummente referido como ruído de desenvolvimento (FIGURA 1). Ao submeter as eventualidades do desenvolvimento à noção de programa, o determinismo epigenético atualiza muitas das teses do determinismo genético, que por sua vez são tributárias do determinismo biológico.


FIGURA 1. Interação entre genes, ambiente e diversos fenómenos caracterizados como ruído do desenvolvimento na constituição contingente dos organismos[9].

Determinismo(s) na Biologia

Da relação entre tamanho do crânio e inteligência até ao programa epigenético, o determinismo mantém o seu núcleo duro: a noção de que a biologia humana é responsável por determinar o sucesso ou fracasso de grupos humanos. Tentou-se demonstrar aqui que os diversos determinismos — biológico, genético e epigenético — têm como ponto comum a tentativa de deslocar a atenção da esfera social para a biológica, sonegando, assim, a responsabilidade política de agir para transformar realidades de desigualdade, exploração e opressão. Tentou-se demonstrar, também, que as ideias deterministas não estão ultrapassadas, pelo contrário, elas atualizam-se incessantemente de modo a adequarem-se aos avanços científicos. Neste sentido, este trabalho defendeu o ponto de vista de que a biologia humana, em articulação dialética com o desenvolvimento social, não nos aprisiona, mas oferece as ferramentas para a nossa libertação de algumas condicionantes da própria biologia.

Referências

  1. BAIRD, P. N. et al., Myopia, Nature Revies: Disease Primers, 6, 99. 2020. DOI: 10.1038/s41572-020-00231-4.
  2. LEWONTIN, R. C., The apportionment of human diversity, Evolutionary biology, Springer, Nova York, p 381—398. 1972.
  3. GOULD, S. J., A falsa medida do homem, Martins Fontes, São Paulo. 1991.
  4. KEVLES, D. & HOOD, L., The code of codes: scientific and social issues in the Human Genome Project, Harvard University Press, Cambridge, p VII-X. 1992.
  5. HOOD, L. & ROWEN, L., The Human Genome Project: big science transforms biology and medicine, Genome Medicine, 5, 9, 79. 2013. DOI: 10.1186/gm483.
  6. SALZBERG. S., Open questions: How many genes do we have?, BMC Biology, 16, 94. 2018. DOI: 10.1186/s12915-018-0564-x.
  7. SCHUOL, S., Epigenetics and genetic determinism (in popular science), Springer, Berlim, p 41—54. 2017.
  8. WAGGONER, M. & ULLER, T., Epigenetic determinism in science and society, New Genetics and Society, 34, 2, 177—195. 2015. DOI: 10.1080/14636778.2015.1033052.
  9. LEWONTIN, R. C., A tripla hélice: gene, organismo e ambiente, Editora Schwarcz, São Paulo. 2002.


Criada em 26 de Maio de 2022
Revista em 11 de Outubro de 2022
Aceite pelo editor em 20 de Dezembro de 2022