Biocombustíveis

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Referência : Viegas, M., Ramos, M.J., Fernandes, P.A., (2018) Biocombustíveis, serão a solução?, Rev. Ciência Elem., V6(2):043
Autores: Matilde Viegas, Maria João Ramos e Pedro Alexandrino Fernandes
Editor: José Ferreira Gomes
DOI: [http://doi.org/10.24927/rce2018.043]
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“A 21 de Fevereiro de 2018, o nível de poluição de partículas finas com diâmetro inferior a 10 μm, PM10, atingiu em Paris níveis alarmantes, com um pico correspondente ao dobro do limite máximo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda não exceder este limite máximo por mais de três dias por ano. Com este recente pico, os parisienses já o ultrapassaram.”

Em: Un pic de pollution «grave» en Ile-de-France, Le Monde 22 de Fevereiro de 2018


Esta notícia é um dos inúmeros exemplos dos efeitos do aquecimento global, termo com o qual estamos cada vez mais familiarizados, infelizmente. Este fenómeno é consequência de Gases de Efeito de Estufa, GEE (dióxido de carbono, metano e óxido de azoto, entre outros) que se acumulam na atmosfera, enclausurando o calor e tornando o planeta mais quente. A produção em larga escala de GEEs teve início na Revolução Industrial (1800)[1] como resultado da combustão de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) para produção de eletricidade, aquecimento e transporte.

A preocupação em torno do aquecimento global tornou-se um assunto constante na agenda política, sobretudo nas últimas duas décadas. Os primeiros esforços coletivos resultaram no Protocolo de Quioto, em 1997, cujo objetivo era a redução das emissões de GEEs assentando nos argumentos de que i) o aquecimento global era uma realidade; e ii) o CO[2]. O primeiro período do Protocolo terminou em 2012 e, por isso, em 2015, as Nações Unidas promoveram a assinatura do novo Acordo de Paris, o qual consiste numa atualização do antigo Protocolo de Quioto com o objetivo de “fortalecer a resposta global à ameaça das alterações climáticas, no contexto de desenvolvimento sustentável e com esforço para a erradicação da pobreza”[3]. O novo Acordo, ao contrário do de Quioto, estabelece metas tangíveis e quantitativas. O objetivo é manter o aumento da temperatura média global abaixo dos 2º Celsius face à temperatura global na era pré-industrial[4]. Para atingir tal meta, é necessário um esforço mundial, contudo, em 2017, com a saída dos EUA do Acordo de Paris, o segundo maior emissor de GEEs logo a seguir à China[5], perdeu-se uma enorme contribuição. Além do peso evidente que as suas emissões têm para o estado atual do aquecimento global, em falta estarão também a diplomacia e o encorajamento proporcionados por esta força mundial.

No Acordo de Paris, uma das cláusulas exige a inclusão de energias renováveis (eólica, marítima, solar) e de biocombustíveis no mercado de energia, encorajando os países a atingir níveis mínimos da sua utilização. As metas estabelecidas para cada país vão ao encontro ao seu mercado e às matérias-primas disponíveis em cada território, favorecendo o desenvolvimento da economia.

De uma forma generalista, os biocombustíveis englobam combustíveis produzidos através de processos biológicos, como a agricultura e digestão anaeróbica, em vez de produzidos a partir de processos geológicos, como os necessários para a formação de combustíveis fósseis. Isto inclui o biodiesel (produzido a partir de óleos e gorduras orgânicas) e o bioetanol (álcool produzido através de fermentação microbiana de açúcares, seguido de destilação e desidratação), os quais serão o maior foco deste artigo. Duas grandes vantagens são apresentadas como motivadoras para o uso de biocombustíveis: fontes ilimitadas de matérias-primas renováveis, ao contrário dos combustíveis fósseis, dependentes das reservas geológicas existentes; além disso, para a produção destes biocombustíveis, a matéria-prima provém, na sua maioria, da agricultura e desperdício tornando a sua pegada de carbono neutra (o dióxido de carbono libertado durante a sua combustão é igual à quantidade assimilada durante a fotossíntese)[6].

Embora o uso do biodiesel e bioetanol seja, de uma forma abrangente, positivo, é necessário reconhecer as falhas de alguns processos e a oportunidade que lobistas e sectores económicos poderão encontrar nos biocombustíveis. É por isso que o Acordo de Paris e outros conjuntos de políticas são essenciais para a implementação e regulamentação de energias renováveis e biocombustíveis. Ao lado do desenvolvimento científico e investimento monetário, é necessária uma estrita política mundial que estabeleça metas de consumo dos biocombustíveis e energias renováveis no mercado, além de um crucial controlo da indústria.

A partir da década de 70, foram feitos os primeiros investimentos nos chamados biocombustíveis de primeira geração (1G). Estes fazem uso de colheitas de produtos agrícolas, como a soja, cana-de-açúcar, milho, óleo de palma, entre outros, para a produção de biodiesel e bioetanol através de processos de trans-esterificação ou fermentação. A sua disponibilidade e facilidade de processamento permitiram a sua inserção e mistura nos combustíveis atualmente vendidos ao público[7]. O biodiesel pode ser diretamente utilizado nos veículos, sem qualquer alteração, no entanto, a sua utilização pode danificar o motor dos automóveis. Quanto ao bioetanol, este está presente na gasolina disponível em qualquer gasolineira, em misturas contendo até 7,5% de bioetanol no volume total.

Os biocombustíveis 1G fazem uso da colheita agrícola para fins energéticos, o que gera opiniões desfavoráveis por parte de ambientalistas (pelo uso exaustivo da terra agrícola sem compensação, desflorestação e perda de biodiversidade) e problemas éticos, tais como os levantados por responsáveis da UN, como o Dr. Jean Ziegler, que atribui aos biocombustíveis a culpa pela contínua inflação dos preços de alimentos, exacerbando a atual crise de fome mundial- “São necessários 352Kg de milho para encher um depósito de 50L de um carro. Uma criança na Zâmbia ou no México, onde o milho é um elemento básico da dieta, poderia viver com esta quantidade de milho um ano inteiro”[8]. Atualmente, os maiores produtores destes biocombustíveis de primeira geração são os EUA e o Brasil, utilizando cerca de parte da produção global de cereais e óleos vegetais para a produção de bioetanol e biodiesel, causando um ambiente de profunda preocupação em volta da sustentabilidade de produção de energia a médio/longo prazo. De forma a controlar a inflação no preço dos alimentos, a EU estabeleceu um limite de 7% para o uso de biocombustíveis de primeira geração como combustível de transportação[9].

A segunda geração de biocombustíveis (2G) usa biomassa, isto é, qualquer fonte de carbono orgânico que é rapidamente renovado no ciclo de carbono. Os biocombustíveis de segunda geração almejam um uso ponderado de desperdícios da indústria madeireira e agrícola, ou de restos de colheitas agrícolas assim que estas preencham o seu propósito alimentar, evitando interferência com o mercado alimentar e não influenciando os preços dos alimentos básicos[10].

A produção de arroz atingiu o seu pico em 2017, gerando 1140 milhões de toneladas de espigas de arroz, cujo destino é a incineração, compostagem, ou é simplesmente depositada em aterros. Contudo, com a 2G de biocombustíveis, é encontrado potencial energético neste desperdício agrícola[11]. O seu potencial deve-se à matéria lignocelulósica – celulose, hemicelulose e lignina – presente em todas as plantas, incluindo as espigas, em diferentes percentagens. Este material composto é essencial para a estrutura e resistência das plantas: a hemicelulose é a matriz que rodeia o esqueleto de celulose, enquanto a lignina funciona como uma camada protetora. As possibilidades associadas a este tipo de desperdício são inegáveis: a sua abundância e facilidade de obtenção tornam-no muito apelativo. Contudo, o gasto na recolha e transporte desta matéria suplanta os custos de produção e o seu uso continuado poderá contribuir para a erosão do solo. Além disso, para o seu aproveitamento para produção de biocombustíveis, é necessário um pré-tratamento para hidrolisar as ligações covalentes entre os três constituintes da matéria lignocelulósica e permitir a posterior fermentação anaeróbia da celulose, produzindo bioetanol. Este pré-tratamento é visto como outra das desvantagens do processo e está ainda a ser estudado e otimizado, pois de momento as alternativas disponíveis encarecem o produto final e, em alguns dos casos, dependem do uso de químicos poluentes. A esperança está então depositada no estudo de enzimas hidrolíticas, encontradas em organismos termófilos, que serão capazes de aguentar as difíceis condições de tratamento. Contudo, a dificuldade em escalar o processo de fermentação é uma das desvantagens e dos fatores limitantes para a 2G de biocombustíveis, em grande parte devido à dificuldade de monitorizar as condições de fermentação (oxigénio, pH, nutrientes, etc)[12].

A terceira geração (3G) de biocombustíveis foi reconhecida como a melhor alternativa em comparação com primeira e segunda gerações, pois, surpreendentemente, faz uso de algas[13]. A sua enorme disponibilidade por todo o planeta e o facto de não interferirem com os mercados alimentares são os grandes embaixadores desta matéria-prima como o futuro dos biocombustíveis. Ainda que não seja uma matéria infinita, é a que de momento mais se assemelha, por existirem 70 000 espécies (30 000 documentadas)[14]. Estudos conduzidos atualmente estão a explorar a viabilidade energética de 30 espécies de algas, explorando a sustentabilidade, facilidade e escalabilidade da sua produção. Outras vantagens incluem a baixa manutenção necessária para o seu crescimento (luz, dióxido de carbono e nutrientes como azoto, fósforo e potássio); a facilidade com que produzem lípidos e carboidratos que podem posteriormente ser processados em diferentes biocombustíveis e outros coprodutos; a frequência com que podem ser colhidas ao longo do ano (ao contrário de outras colheitas convencionais); a baixa percentagem de hemicelulose, e a praticamente ausente lignina, facilitam radicalmente o seu pré-processamento pois a celulose é mais facilmente extraída. As desvantagens desta matéria incluem o enorme investimento inicial para a construção de infraestruturas para o seu cultivo, que pode ser ou ao ar livre (em tanques de grande dimensão) ou em foto-bioreatores (sistemas fechados altamente controlados)[15]. Prevê-se que em 2030, o preço de produção de combustível a partir de algas[16] será 0,65 €/litro de combustível, valor muito próximo do atual preço de produção do litro de gasolina. Comparativamente aos custos de produção de outros biocombustíveis, o mais barato continua a ser o bioetanol produzido a partir de milho (1G), 0,17 €/litro, seguido de combustíveis celulósicos (2G) a 0,32 €/litro[17].

É evidente que serão necessários esforços políticos e científicos, investimento e regulamentação adequados, para encontrar o caminho ideal para travar o aquecimento global. Em todas as gerações de biocombustíveis apresentadas, existem fatores que afunilam as potencialidades destas alternativas, indicando que a solução passa por criar um consórcio entre as várias possibilidades de forma a tirar o máximo partido sem danificar o planeta ou piorar a crise da fome. O próximo passo passa por substituir os biocombustíveis de 1G por soluções com maior escalabilidade. Acreditamos que nas próximas décadas serão cruciais, e depositamos esperança na investigação científica.


Referências

  1. Changes since the Industrial Revolution - American Chemical Society, acesso em 16 de abril de 2018.
  2. United Nations Treaty Collection.
  3. United Nations Treaty Collection.
  4. LEWIS, S. L., The Paris Agreement Has Solved a Troubling Problem. Nature, 532 (7599), 283–283, 2016.
  5. HAI-BIN, Z. et al., W. Science Direct U.S. Withdrawal from the Paris Agreement: Reasons , Impacts , and China ’ s Response.. Adv. Clim. Chang. Res., 8 (4), 220–225, 2017.
  6. ARO, E., From First Generation Biofuels to Advanced Solar Biofuels., Ambio, 45 (1), 24–31, 2016.
  7. CLARK, J. H. et al., Green Chemistry, Biofuels, and Biorefinery., Annu. Rev. Chem. Biomol. Eng., 3 (1), 183–207, 2012.
  8. ZIEGLER, J., Biofuels a big cause of famine, Globalization, DW, acesso em 27 de março de 2018.
  9. EU agrees plan to cap use of food-based biofuels, acesso em 16 de abril de 2018.
  10. ARO, E., From First Generation Biofuels to Advanced Solar Biofuels., Ambio, 45 (1), 24–31, 2016.
  11. SATLEWAL, A. et al., Rice Straw as a Feedstock for Biofuels: Availability, Recalcitrance, and Chemical Properties., Biofuels, Bioprod. Biorefining, 12 (1), 83–107, 2018.
  12. SATLEWAL, A. et al., Rice Straw as a Feedstock for Biofuels: Availability, Recalcitrance, and Chemical Properties., Biofuels, Bioprod. Biorefining, 12 (1), 83–107, 2018.
  13. ARO, E., From First Generation Biofuels to Advanced Solar Biofuels., Ambio, 45 (1), 24–31, 2016.
  14. GUIRY, M. D., How many species of algae are there?, J. Phycol., 48 (5), 1057–1063, 2012.
  15. DALGLEISH, P., Sustainability Research Project: Research of Suitable Locations, Design and Operation of Microalgae Production Plants for Biofuel’s., Nat. Resour., 08 (11), 671–708, 2017.
  16. The DOE’s shifting worldview for biofuels deployment, now through 2030 : Biofuels Digest, acesso em 16 de abril de 2018.
  17. CLARK, J. H. et al., Green Chemistry, Biofuels, and Biorefinery., Annu. Rev. Chem. Biomol. Eng., 3 (1), 183–207, 2012.




Recursos relacionados disponíveis na Casa das Ciências:

  1. CREATIVELAB_SCI&MATH - A Amazónia em perigo - Ciências Naturais - 8.º ANO.




Criada em 27 de Março de 2018
Revista em 18 de Maio de 2018
Aceite pelo editor em 18 de Junho de 2018